Evangélica desde a adolescência, Ana Rayssa, 20, frequenta a Igreja Internacional da Graça de Deus, e tem avaliado como vai votar nas eleições 2024. Para ela, a fé e a política têm diferenças, embora tenha visto discursos de candidatos que usam cargos como bispo e pastor, como nomenclatura das candidaturas.
“Na igreja temos nossas ideologias e dogmas, nem sempre (as propostas de candidatos) bate com aquilo que eu vivo”, avalia ela, que vive em Itaquera, na zona leste de São Paulo. “A política está representando um todo, não apenas a igreja, não deve só servir para a igreja”, opina Ana.
As candidaturas com viés religioso cresceram 225% ao longo de 24 anos, segundo levantamento do IPRI (Instituto de Pesquisa e Reputação de Imagem). Essa situação também é vista nas periferias da Grande São Paulo e nas cidades da região metropolitana.
Levantamento da Agência Mural indica que ao menos 160 concorrentes usam os nomes de bispos, pastores e apóstolos na disputa eleitoral. As religiões de matriz africana também aparecem, mas com menor força: dez candidatos usam os termos mãe e pai, por serem mães ou pais de santo.
Como parte da série sobre as juventudes periféricas e a política, a Mural conversou com jovens moradores de áreas periféricas de São Paulo para entender como a fé pode impactar na hora do voto e como lidam com isso.
Pautado na palavra de Deus
Ana é estudante de pedagogia pelo Prouni (Programa Universidade Para Todos) e de teologia pela igreja que frequenta. Veio da Paraíba e mora há mais de 12 anos na zona leste de São Paulo. Ela defende a diversidade religiosa no meio político, mas com ressalvas.
Aos 25 anos, Emilly Mendes, moradora da rua Paissandú, no parque Marabá em Guarulhos, na Grande São Paulo, diz que está estudando para tirar uma boa nota no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) porque tem o sonho de passar no ProUni (Programa Universidade Para Todos) e cursar fonoaudiologia.
Educação é uma das pautas importantes para a jovem que desde a adolescência frequenta uma igreja evangélica.
Para ela, a escolha do voto sempre será pautada na palavra de Deus e naquilo que aprendeu. No entanto, diz que votar em candidatos que também são cristãos não é um fator que a incentiva a ir às urnas.
Mendes confirma que pessoas visitam sua igreja para conhecer fiéis, mas isso não é influenciável para ela.
“Depende de cada pessoa. Não me deixo levar por alguém diretamente porque visitam a minha igreja. Se não o conheço, vou pesquisar sobre e cogitar o voto. Essas visitas são como auto-divulgação, o que é natural para um candidato”, avalia.
Atualmente, Emilly acompanha as notícias pela televisão e alerta sobre as precariedades na saúde em Guarulhos, embora também aponte a educação e a necessidade de “oportunidades mais abrangentes para aqueles que não tem condições”, como cursos profissionalizantes.
Nomes igrejeiros
Em 2022, o Brasil teve recorde de candidatos com denominação evangélica. O levantamento realizado pelo Poder360 mostra que nas eleições de 2022, 520 nomes nas urnas foram relacionados à igreja evangélica, sendo pastores, bispos, reverendos ou só membros de uma igreja.
Neste ano, dos 160 candidatos de igrejas na Grande São Paulo, 45% estão em partidos da direita, sendo a maioria do Republicanos, sigla ligada à Igreja Universal, e o PL. Outros 43% estão em legendas do chamado “centro”, como PSD e PP, enquanto 17% são de siglas da esquerda, em especial no PDT e Solidariedade.
Para a pastora, teóloga e mestre em ciência da religião, Livia Carvalho, colocar os nomes de cargos igrejeiros na candidatura é uma estratégia “para conseguir um público mais conservador”. “Na igreja tem muito uma questão de se apoiar profissionalmente, tem uma lógica social também”, avalia.
Contudo, ela aponta que o campo da esquerda também tem utilizado mais essa tática. “Tem candidatos progressistas que se apresentam como pastor para disputar com os conservadores. De que ele também é pastor sem que pessoas de direita tirem essa legitimidade de pastores de esquerda, por exemplo”, explica.
“Não estamos tomando espaço para domínio e sim para justiça social. Aquilo que Jesus falou sobre olhar para os pobres e oprimidos, órfãos e viúvas. Quem são essas pessoas hoje em dia? Devemos trabalhar desta maneira com a juventude”
Livia Carvalho, pastora
Lívia faz parte de uma igreja afirmativa IEP de Jesus Cristo. É também bispa na igreja chamada IADLA- ela se considera cristã, de esquerda e progressista. Ela avalia que parte dos cristãos ainda vivem a lógica do domínio de que precisa do Brasil todo com a mesma fé e isso parte de uma base fundamentalista do ponto de vista da religião.
De acordo com a pesquisa Global Religion 2023, produzida pelo Instituto Ipsos, quase 9 a cada 10 brasileiros dizem acreditar em Deus. Entre os brasileiros religiosos, ou seja, aqueles que frequentam igrejas e manifestam a fé, 70% disseram ser cristãos (católicos, evangélicos e outras denominações).
Para a Lívia é impossível querer optar por um cargo público e não conseguir dialogar com a fé das pessoas, principalmente porque de acordo com essas pesquisas fica mais claro o caminho que políticos podem estrategicamente percorrer.
“Percebemos a influência de pastores em si na decisão dos membros, já que eles são vistos como exemplos de fé, é preciso aprender a conversar com essa camada religiosa”, defende.
“A extrema direita usa isso (número crescente de cristãos) como forma estratégica e até perversa para manipular e angariar votos sem pensar nas pessoas, políticas públicas e sim nas quantidades (de cristãos)”,diz a pastora.
O PEDIDO DE VOTO NAS IGREJAS
A campanha eleitoral em igrejas costuma ocorrer de forma explícita. Candidatos a vereador visitam igrejas dos ministérios onde são membros.
O culto segue normalmente, até o momento que o dirigente lhe entrega um tempo para ministrar a palavra, esta que deveria ser a de Deus, abre espaço para falar de política no lugar do sagrado.
No final é pedido votos e tentam passar confiança para os fieis. Os entrevistados acima não falavam abertamente sobre essa questão, mas a reportagem presenciou situações desse tipo este ano.
Enquanto isso no terreiro
Vindo de uma família majoritariamente negra, o jornalista Mateus Fernandes, 24, cresceu em um ambiente onde o axé, a espiritualidade e a música eram parte do cotidiano, ainda que, por muito tempo, a religião não fosse algo plenamente aceito por ele. Hoje ele segue uma religião de matriz africana, especificamente, a ifá.
“Durante muito tempo, não via a religião de matriz africana como algo bom, porque isso não é ensinado nas escolas, não há uma representação política”, conta Mateus, que hoje encontra na fé um ponto de conexão profundo com a própria história e identidade.
Ele relembra que o primeiro contato físico com o barracão — do terreiro — aconteceu naturalmente, por meio de diálogos e da convivência com aqueles que praticavam a religião. “Tinha um receio, e quando a gente quebra essa barreira do receio, eu senti que meu corpo estava onde sempre deveria estar.”
A jornada de Mateus rumo à aceitação e ao entendimento de sua religiosidade é uma experiência compartilhada por muitos jovens negros no Brasil, que enfrentam preconceitos e desinformação sobre as religiões de matriz africana.
Para ele, o desconhecimento e o medo foram alimentados pela falta de representatividade nas escolas, na política e pelo preconceito social que envolve essas religiões, muitas vezes marginalizadas e criminalizadas.
Essa presença pode ser vista na disputa pelas Câmaras Municipais, embora comecem a aparecer mais. Enquanto há 160 candidatos cristãos, há 10 candidatos com denominações de religiões afro como pais e mães de santo.
“É difícil encontrar um candidato que não seja um pai de santo ou uma mãe de santo que realmente respeite e paute as questões das religiões de matriz africana. Por isso, muitas pessoas da própria religião acabam se candidatando”, afirma Mateus.
Para ele, essas religiões são fundamentais para entender o país e são um pilar importante na luta pela justiça social. “O Brasil é um país majoritariamente negro, mas ainda assim, não vemos o estudo das religiões de matriz africana nas escolas. Isso é uma forma de apagamento cultural e histórico”, critica.
Aos 22 anos, Maria Eduarda, moradora do Itaim Paulista, na zona leste, e estudante de engenharia civil, segue o candomblé, religião que a acolheu desde pequena e onde ela encontrou não só fé, mas também a verdadeira identidade.
“Sinto que a religião é o meu chamado. As danças, os cantos, as roupas… tudo é de uma beleza que me fascina”, conta com entusiasmo.
Desde muito jovem, Maria Eduarda se conectou com os elementos culturais e espirituais do candomblé, uma religião de matriz africana que, embora rica em tradição e ancestralidade, enfrenta desafios de visibilidade e representatividade.
‘A importância da religião vai além do âmbito espiritual. Hoje temos uma forte influência de outras religiões, mas não vemos a mesma representatividade para as religiões afro-brasileiras’
Maria Eduarda, estudante de engenharia civil
Na última eleição, a estudante observou um fenômeno preocupante: o uso da religião por diversos candidatos para promover as campanhas. Ela percebeu que, embora algumas religiões tenham sido centrais nas plataformas de candidatos, as religiões de matriz africana, como o candomblé, continuam sem o mesmo espaço.
Sem forçar a barra
Para Maria Fernanda Silva de Moraes, 32, empreendedora gastronômica e moradora do Jardim Vista Alegre em Embu das Artes, na Grande São Paulo, e católica desde a infância, a separação entre fé e política é essencial.
“Gosto de separar os dois assuntos, pois são bem polêmicos. Não vejo relação dos dois juntos na igreja”, afirma. Ela enxerga na religião um espaço de conforto e tranquilidade, características que, segundo ela, não combinam com o campo conflituoso da política. “Na religião procuramos consolo e calmaria, e política não se encontra isso”, diz.
No entanto, quando questionada sobre os valores católicos que poderiam influenciar a política, a empreendedora é clara: para ela, o papel da igreja é orientar os fiéis a pesquisarem e tomarem decisões com base em informações sólidas, não em discursos influenciados por lideranças religiosas.
“Apenas orientar os fiéis a pesquisar sobre cada candidato e tomar sua decisão individual, não acompanhar o rebanho”, aconselha.
Essa postura reflete a sua crença de que líderes religiosos não devem se envolver diretamente em questões políticas. “Imagina a briga que dá. Política é uma opinião particular e sempre que é discutida gera conflitos”, ressalta.
Para ela, quando a igreja tenta se posicionar politicamente, corre o risco de afastar fiéis que buscam na fé um refúgio de paz e tranquilidade.
Outro ponto levantado por ela é a cautela com a propaganda política dentro dos espaços religiosos. “Não fazemos propaganda, de vez em quando o padre cita quando tem alguma visita, mas nunca induz o fiel a uma escolha particular”, observa, reforçando a importância de manter uma neutralidade dentro da igreja.