Por: Artur Ferreira | Cleberson Santos | Matheus Oliveira | Nathália Ract da Silva | Paulo Talarico
Arte: Magno Borges
Foto: Léu Britto
Edição: Paulo Talarico
Publicado em 24.01.2025 | 12:53 | Alterado em 24.01.2025| 14:15
Os últimos dados do IBGE mostram que a cidade de São Paulo possui 1,7 milhão de pessoas que vivem em mais de 1.300 favelas. Entre tantas comunidades, ocupações e moradias que começaram improvisadas, há mais de 300 jardins, 92 vilas e 74 parques. O que há por trás desses nomes? No aniversário de 471 anos de São Paulo, fazemos um mergulho sobre a visão de moradores de vários desses territórios e um pouco do que quer dizer essas nomenclaturas
Tempo de leitura: 10 min(s)Nos anos 1990, o Jardim Joana D’arc era uma área repleta de barro, plantas como eucaliptos e ipês e muitas bicas de água, que faziam a diversão da garotada. “Ir pra escola e trabalho era um desafio muito grande, por causa do barro depois da chuva”, relembra Gleiciane Silva de Andrade, 35, que vive na região da zona norte de São Paulo há mais de 25 anos.
O local é considerado uma das 1.359 favelas localizadas na cidade e conta com perto de 3 mil moradores. Mas o Joana D’arc não é o único “jardim” por ali. Perto dele, há o Jardim Felicidade, considerada a quarta maior comunidade da cidade, com 16 mil habitantes. Também ao redor, aparece o Jardim Fontális.
Na zona leste, o Jardim Novo Império com 20 mil moradores, só perde para Paraisópolis e Heliópolis em número de habitantes. E tem o Jardim Colombo, Jardim Jaqueline, jardins e jardins.
No dia em que a cidade de São Paulo celebra 471 anos, em 2025, a Agência Mural revela o que dizem os nomes das favelas da cidade, espalhados por diversas periferias.
Levantamento feito pela Agência Mural mostra que pelos mais de 1.416 nomes, algumas palavras aparecem com mais ênfase. Mais de 500 favelas foram batizadas com nomes que remetem a bairros, como Jardins, Vilas e Parques. Por um lado, indica o desejo do reconhecimento do espaço, ao mesmo tempo, uma tático de sobrevivência ou para garantir a venda de imóveis.
Nomes de religiosos e de áreas rurais como chácaras também aparecem com frequência.
A Mural conversou com moradores e lideranças comunitárias das várias periferias da capital paulista para entender mais sobre a histórias dessas favelas e comunidades, e o que eles desejam para o futuro.
Segundo o Censo 2022, 336 favelas de São Paulo contam com o nome Jardim, como o Joana D’arc, onde Gleiciane é auxiliar administrativa e vende doces com a “Silva e Salles Delícias Caseiras”.
Para o urbanista do CEP (Centro de Estudos Periféricos), Anderson Nakano, as nomeações podem ser estratégias para convencer as pessoas a comprarem os imóveis, o mesmo com relação às vilas, que estão na denominação de 92 territórios.
VILAS E JARDINS
Vilas remetem às vilas operárias e a noção de vida coletiva, enquanto ‘Jardim’ faz alusão aos bairros Jardim, área rica da cidade, onde estão o Jardim Paulistano, Jardim Paulista, Jardim América e Jardim Europa.
Essas regiões tiveram uma urbanização planejada para população rica da cidade no começo do século 20, enquanto os moradores nas periferias tiveram que se virar para construir as próprias moradias.
Além disso, a ideia de jardim, um lugar que una as residências e a natureza, com plantas e flores, pode ser visto no começo dessas ocupações. Gleiciane lembra que quando chegou havia muitos eucaliptos, pés de manga e ipês, o que levou a maioria das ruas ganhar o nome de alameda. “Pena que não existam mais quase nenhuma delas”, ressalta.
Gleiciane no Jardim Joana D’arc aponta mudanças no bairro e necessidade de mais lazer para jovens Léu Britto/Agência Mural
Ela recorda que as bicas de água na infância eram o espaço de diversão para a infância. O local era chamado Associação Pôr do Sol Jardim Joana D’arc mudou bastante desde então. “Não tinha tantas casas e comércios como agora, o Joana D’arc cresceu muito e tem ruas que nem conheço direito.”
A praça onde fica o terminal da lotação, que poderia ser melhor aproveitada
Poderiam fazer uma quadra
Colocam brinquedos para as crianças e também fizeram um espaço para exercícios, mas não fazem manutenção e acaba se tornando perigoso.
Teve muitos casos de dengue, precisa de mais ações para impedir o avanço da doença
Apoio aos moradores que abrem os próprios comércios.
Maya Lima, 26, recepcionista do Teatro Alfredo Mesquita, mora no Jardim Joana D’arc há três anos, e nota a presença de muitos migrantes nordestinos. Para ela, o principal ponto negativo é o ônibus e todo o itinerário que faz até chegar ao Tucuruvi, “é um caminho muito longo pelas ladeiras e alamedas, característico daqui.”
Perto dali fica o Jardim Fontális, onde a trancista Amanda Cordeiro da Silva, 22, vive desde que nasceu. Ela também é artista independente, rapper e MC conhecida como Mada.
“O Jardim Fontális, segundo minha mãe, era só mato e barranco, não tinha nenhum comércio quando ela chegou e aos poucos os próprios moradores foram construindo suas casas e comércios”
O bairro do Jardim Fontális, assim como o Joana D’arc, faz parte do distrito do Tremembé, na zona norte. Contam os antigos que o nome foi dado por conta de uma fonte de água mineral que havia na região. Tremembé em tupi significa “terreno alagadiço” ou “pântano”.
‘Seria interessante ter novas áreas de lazer para as crianças, mais investimento em moradias dignas, em cultura e educação’
Mada, moradora do Jardim Fontális
Amanda diz que ainda é preciso de muitas melhorias, como residências que ainda não contam com saneamento básico. Atualmente, a família dela conseguiu uma casa própria no bairro. Esse desejo e a necessidade de ter uma residência foi o que levou muitas dessas favelas a nascerem em uma cidade onde a disputa por terra também marca a história paulistana.
Conseguir moradia é um desafio para moradores de baixa renda em São Paulo há muito tempo. Cortiços na região central no começo do século 20 e a Favela do Canindé nos anos 1940, citada pela escritora Maria Carolina de Jesus nos relatos de ‘Quarto de Despejo’, são exemplos. A primeira favela registrada na cidade consta de 1918, segundo a gestão municipal.
Urbanista e integrante do CEP (Centro de Estudos Periféricos), Anderson Nakano diz que a questão da moradia é o fator determinante das periferias e que as favelas são consequências dessa batalha entre empreendedores e grileiros. “A terra aqui em São Paulo é muito mais disputada por loteamentos irregulares”, afirma.
Segundo ele havia dois movimentos. Um envolvia o proprietário que incentivava a ocupação irregular para depois entrar com um pedido de reintegração de posse para receber uma compensação do governo.
Também houve quem ocupasse a terra de um terceiro, ou até mesmo pública, e falsificava documentos para atestar a posse da área e vender para as famílias – um processo chamado de grilagem.
“As favelas tinham poucos espaços para crescer. Muitos desses terrenos mesmo vazios estavam ali seguros para a especulação. A partir da década de 1980 não teve jeito, aumentou muito a pressão por construir moradia”, afirma.
Segundo dados do Favela Sampa, a grande maioria das favelas em São Paulo surgiu nos anos 1970 e 1980. Dados obtidos pela Mural via Lei de Acesso à Informação indicam que 57% das favelas nasceram nos anos 1970 e 1980.
Nakano afirma que as favelas paulistanas se diferenciam das comunidades do Rio de Janeiro e Brasília por estarem próximas a cursos d’água, morros e vales, o que aumenta os riscos de deslizamentos de terra e inundações.
Por outro lado, são menores territorialmente e em alguns casos instaladas em terrenos públicos ou de proteção ambiental. Outro ponto que se destaca recentemente é a verticalização, onde casas se tornaram sobrados e sobrados têm se tornado prédios de até cinco andares.
“Essa cidade é perversa nesse sentido estruturante de expulsar os pobres das áreas centrais para as periferias”, afirma.
‘A periferia não é produto da natureza, não é produto do acaso, ela é projeto sócio-político dessa elite predatória que a gente tem nessa cidade’
Anderson Nakano, urbanista do CEP (Centro de Estudos Periféricos)
Um dos fatores que aumentou a pressão por moradia foi o crescimento da população. A vinda de migrantes de estados do Nordeste, muitos para trabalhar na construção civil, por exemplo, levaram a que novas áreas fossem ocupadas.
Com pouco dinheiro no bolso, os trabalhadores não tinham como pagar altos aluguéis ou prestações de imóveis e esses territórios se tornaram uma saída para conseguir um teto. É o caso da São Remo.
“Estamos aqui pra mostrar que existe periferia perto da USP (Universidade de São Paulo)”, afirma Mano Lyee, rapper, escritor, ativista social e que participa do grupo Ideologia Fatal. “Subi num palco aqui, tinha 15 anos, isso lá nos anos 1990”, o local é o campo de futebol do Jardim São Remo, local que também abriga o time de várzea da comunidade.
O Jardim São Remo está localizado ao lado do campus Butantã da USP, no distrito do Rio Pequeno, e representa uma característica de várias favelas da capital, formadas por conta da chegada de pessoas que trabalharam em grandes obras. É semelhante a Paraisópolis, incrustrada no Morumbi.
Na São Remo, a construção da principal universidade brasileira está por trás do nascimento.“Aqui foi uma favela formada por trabalhadores da USP, tudo aqui foi ocupação desde anos atrás”, conta o rapper.
Segundo a Prefeitura de São Paulo, a comunidade surgiu na década de 1960. A comunidade se estende, hoje, até a lateral da avenida Corifeu de Azevedo Marques.
O Jardim São Remo já possui mais de 13 mil habitantes, segundo dados da ONG “Agente – Valorizando Gente”, situada na comunidade.
Porém, mesmo ao lado de uma das maiores universidades da América Latina, as políticas públicas direcionadas ao bairro nunca foram efetivas o suficiente para resolver os problemas.
Enquanto a equipe da Agência Mural caminhava com Lyee pelo bairro, ele relembra sobre problemas:
Falta de água em algumas partes do bairro
Falta de energia
Questão da violência policial.
Acúmulo de lixo, “só entram caminhões pequenos para recolher o lixo e não é o suficiente”
Falta de saneamento básico
Segundo o ativista social, que hoje mora em Osasco, na região oeste da Grande São Paulo. o Jardim São Remo só foi receber uma UBS (Unidade Básica de Saúde) em 2015, mesmo sendo uma reivindicação de décadas.
“Os moradores tinham que sair daqui pra muito longe pra fazer consultas e exames, e dificilmente iam ser atendidas no hospital da USP sem agendamento”, afirma Lyee.
O Jardim São Remo é uma comunidade em expansão. Há três anos, começou a se formar a Buracanã, outra ocupação e que vive ainda mais os problemas de falta de água e saneamento.
Lyee também faz um apelo para que a prefeitura olhe para o lazer e a educação das novas gerações do Jardim São Remo. “Antes aqui tinha um ‘Circo Escola’ com lona e tudo, e foi desativado, […] a molecada tem só o campo e a quadra, mas é só de terra, tinha que ter um campo sintético [para melhorar o espaço]”.
São Paulo carrega o nome de um dos apóstolos mais famosos da Bíblia. Além disso, a cidade oficialmente foi fundada por jesuítas portugueses, apesar dos povos indígenas que já habitavam a região. Enquanto religiosos desejavam catequizar os povos originários, a cidade também recebeu parte da diáspora africana ao longo dos séculos de colonização.
Esse caldeirão de diferentes realidades, classes sociais, religiosidades e costumes estão presentes nos nomes que batizam várias quebradas da cidade. A religião não passou longe também do batismo das favelas.
O nome religioso mais presente nas periferias é o de Santa Terezinha, com sete comunidades, empatada com Nossa Senhora Aparecida. Quanto aos santos masculinos, São José é o mais presente.
Entre os distritos do Capão Redondo e do Jardim Ângela, zona sul da capital, está a Chácara Santa Maria, uma junção desses nomes mais comuns, possuindo tanto a característica rural (Chácara), quanto religiosa (Santa) e de nome de pessoa (Maria).
O bairro fica no extremo sul da capital paulista, no limite entre São Paulo e Itapecerica da Serra, com pouco mais de 5,4 mil moradores.
Carlos Henrique Silva do Nascimento, 50, mora há 37 anos por lá, desde o final da década de 1980. Atuando hoje como presidente da Associação Amigos do Bairro Chácara Santa Maria, ele acompanhou boa parte da evolução do bairro.
‘Quando cheguei com meus pais era uma área muito verde, sem asfalto. Não nego que hoje melhorou muito, temos água encanada e não mais poço. Temos asfalto, ônibus, comércio, posto de saúde’
Carlos Nascimento, da favela Chacára Santa Maria
Apesar dessas conquistas, Carlos reforça que o Chácara Santa Maria ainda precisa de melhorias, principalmente na questão ambiental. O bairro fica no entorno da nascente de um córrego que passa por todo o distrito.
“Temos várias casas nas encostas e é comum acontecer acidentes nas épocas das chuvas. Também não temos ainda áreas de lazer nem esportes para nossas crianças e idosos”, comenta Carlos.
Apesar de estar mais próximo de bairros como o Parque Independência e o Valo Velho, no “lado Capão Redondo do bairro”, o Chácara Santa Maria conta com o CEU Feitiço da Vila, que oferece atividades de lazer à comunidade, como quadras, piscina, biblioteca e sala de cinema.
O nome Feitiço da Vila, que é também da rua onde o CEU está instalado, faz referência a uma música de mesmo nome do sambista Noel Rosa. Outra importante rua do bairro também é inspirada numa canção. Trata-se de Luar do Sertão, que já foi cantada por nomes como Luiz Gonzaga, Chitãozinho & Xororó e Milton Nascimento.
Além de chacáras, muitas vez os nomes relacionados as plantas aparecem com frequência, caso de um parque que já foi florido no passado.
Jardim Fontális, na zona norte de São Paulo. 1,7 milhão de pessoas vivem em favelas na cidade Léu Britto/Agência Mural
A terceira palavra mais presente nos nomes das favelas de São Paulo são os parques. Só o Parque das Flores tem dois pela cidade, um na zona oeste e outro na zona leste. É neste segundo que mora José Henrique Soares de Jesus, 57.
“Quando a ocupação do bairro começou aqui era uma área cheia de natureza, era uma fazenda, e tinha muitas árvores floridas”, conta ele que preside a ONG da Área Social do Parque das Flores.
A ONG existe desde 1995, quando a região do Parque das Flores começou a receber os primeiros moradores.
Henrique vive na Vila Bela, mas desde aquela época formou laços com os primeiros moradores da região, e, portanto, ajudou na criação da ONG. Hoje, a organização atinge também os bairros do Jardim Santo André e Jardim São Francisco, todos na região do distrito de @São Rafael@, na zona leste.
Henrique lembra que na época todos esses bairros passaram por um processo de ocupação dos primeiros moradores.
Na época, a maior preocupação dos primeiros moradores do Parque das Flores era com golpistas e atravessadores que vendiam terrenos na região a altos custos para famílias que estavam desesperadas por uma moradia.
A pauta de moradia ainda é um dos assuntos principais e que mais orgulha Henrique. “Hoje agradeço a Deus, porque o Vila Bela e o Parque das Flores está tudo sendo regularizado através da nossa luta, não foi fácil”, diz o presidente da ONG.
Apesar dos avanços, a região ainda precisa de obras para manutenção de córregos que em épocas de grandes chuvas afetam toda a região, também trazendo risco aos moradores.
Henrique também lamenta que a região passou por um longo processo de desmatamento das flores e árvores originais.
‘Na primavera, aqui ficava todo florido, hoje na realidade não temos mais flores, tudo que tinha se acabou’
Henrique, da Vila Bela, zona leste de SP
“Nem surgiram mais flores, hoje o bairro está todo urbanizado, e agora que está tudo regularizado. O que a gente precisa agora é de um parque aqui no nosso local, e tem área verde para fazer parque”, afirma Henrique.
O ativista conta que luta pelo Morro do Cruzeiro, “para usar aquela região para fazer um parque. Lá também foi desmatado e agora a gente planta lá para poder fazer esse novo espaço”.
Jornalista e redator. Atuou nas redações do Observatório do Terceiro Setor e Rádio CBN. Adora livros, cinema, podcasts e debater sobre política internacional. Palmeirense. Correspondente do Jardim São Luís desde 2022.
Correspondente do Capão Redondo desde 2019. Do jornalismo esportivo, apesar de não saber chutar uma bola. Ama playlists aleatórias e tenta ser nerd, apesar das visitas aos streamings e livros estarem cada vez mais raras.
Jornalista, educomunicador e correspondente de São Mateus desde 2017. Amante de histórias e de gente. Olhar sempre voltado para o horizonte, afinal, o sol nasce à leste.
Historiadora e Fotojornalista. Realizadora do documentário curta-metragem "Chile de olhos bem abertos". É contadora de histórias na biblioteca da Fábrica de Cultura do Jaçanã. Correspondente do Jaçanã desde 2023.
Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.
Para esta reportagem, utilizamos as bases disponíveis sobre o Censo 2022 disponíveis no site do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Com base nele, filtramos as favelas da cidade de São Paulo. A lista de comunidades e a população de cada uma pode ser acessada aqui.
Com esses dados, separamos os nomes das favelas em um documento de texto e depois utilizamos um código de programação Python para contabilizar quais são as palavras que mais aparecem nos nomes das favelas.
A partir dessa classificação, começamos a verificar quais favelas estavam com nomenclaturas mais presentes e com nossa rede de correspondentes nas periferias da cidade, começamos a busca por moradores que vivem nessas regiões para entender as histórias e as necessidades do território.
Também consultamos o CEP (Centro de Estudos Periféricos) para entender o que pode estar por trás desses nomes.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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