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Por que a Dutra é a região com mais acidentes em Guarulhos

Por: Cleberson Santos e Katia Flora e Renan Omura

A cidade de São Paulo é servida por ao menos dez rodovias. Além de interligar a capital com outras regiões do Brasil, essas vias também são preocupação de moradores que precisam do trajeto para conseguir acessar a capital. É o caso de Guarulhos. Na cidade, a Rodovia Presidente Dutra (uma das partes da BR 116) é a principal via de acesso dos moradores e também o ponto de acidentes mais preocupantes entre todas as vias expressas da Grande São Paulo.

Um a cada cinco sinistros que resultaram em mortes em rodovias na região metropolitana foram na BR 116, 40% deles em Guarulhos. Apesar disso, houve redução nos últimos anos, em especial durante a pandemia em 2020.

Quem vive na região, relata dificuldades no trânsito, obras paradas, falta de segurança nos pontos de ônibus e necessidade de mais passarelas.

Com apoio do ICFJ (Internacional Center For Jornalism), a Agência Mural conversou com moradores e especialistas em mobilidade e transporte rodoviário para entender como é possível tornar os cerca de 21 km entre o Rio Cabuçu de Cima (limite com São Paulo) e a Estrada dos Vados (no limite com Arujá) mais seguros e mostra o que é a vida cruzada pela rodovia.

Rodovia Presidente Dutra, em Guarulhos. Trecho é o que registrou mais ocorrências de trânsito Renan Omura/Agência Mural

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Trânsito complicado

Guarulhos registrou 135 acidentes fatais na rodovia entre 2018 e 2021. O valor é igual ao de sinistros de Juquitiba, Arujá, Embu das Artes e Taboão da Serra somados.

Segundo a assessoria de imprensa do Grupo CCR, que tem a concessão da via, a Dutra é uma “rodovia moderna e segura, com elevados padrões de serviço e atendimento”. A empresa aponta que entre os anos de 2018 e 2020 houve uma redução de 23% no número de vítimas fatais.

O Infosiga, plataforma do governo estadual que contabiliza os casos, confirma a redução de 23,7% de 2018 para 2019, caindo de 101 para 77 óbitos. Contudo, o número se manteve na casa dos 70 nos anos seguintes. Até outubro de 2021, foram 78 no total, mais do que os 75 nos doze meses de 2020.

Número de vítimas no trânsito, ano a ano @Magno Borges/Agência Mural

O motorista de aplicativo Vagner José dos Santos, 58, mora no Bairro dos Pimentas, em Guarulhos. Nos últimos três anos, ele sofreu quatro sinistros na Rodovia Presidente Dutra enquanto trabalhava.

“O terceiro acidente que eu sofri foi o pior. Um caminhão me pegou de lado e destruiu a porta do meu carro. As demais, foram batidas na traseira e um motoqueiro que arrancou no meu retrovisor”, conta.

Foram 1.977 acidentes não fatais na via entre janeiro de 2019 e outubro de 2021. Há uma tendência de queda, porém. Foram 787 em 2019, e 653 em 2020 – queda de 17%. Em 2021, foram 537 até o mês passado.

Além do fluxo intenso de veículos em alta velocidade, o congestionamento nas alças de acesso é um dos obstáculos. “As alças precisam ter mais aberturas. Principalmente do aeroporto e do Bonsucesso. A passagem é muito apertada”, afirma.

O motorista de aplicativo Vagner José dos Santos, 58, sofreu 4 acidentes na Dutra no últimos três anos @Renan Omura/Agência Mural

O motorista de aplicativo conta que a lentidão no fluxo também é um dos fatores que contribuem com o número de ocorrências na região, que se concentram nos horários de pico da manhã e da noite.

O mecânico Fabiano Alves, 31, é proprietário de um posto de molas localizado a poucos metros do km 212 da Dutra, o trecho com mais acidentes fatais em toda a via.

Ele conta que a maior parte das ocorrências que presenciou na via aconteceu em decorrência da falta de manutenção preventiva de veículos pesados. “Já vi clientes falarem que estão rodando com a suspensão do caminhão quebrada há dois meses”, afirma.

Fabiano conta que alguns caminhoneiros relatam que, com a alta do preço do combustível e das peças, está cada vez mais difícil manter a manutenção preventiva em dia.

“A CCR (Companhia de Concessões Rodoviárias) só tira você do local do acidente. Eles te jogam no primeiro posto. Não tem socorro. É só um guincho para evitar transtornos para eles mesmos”, afirma.

Maior parte dos acidentes não fatais ocorreram em horários de congestionamento @Renan Omura/Agência Mural

O fluxo de caminhões é natural pelo ponto estratégico da rodovia. A BR-116 é uma das maiores rodovias brasileiras, ela corta 10 estados e é caminho obrigatório para quem dirige de São Paulo em direção às capitais mais próximas, Curitiba e Rio de Janeiro.

Dentro do estado, ela recebe dois nomes. Em direção a capital paranaense é chamada Régis Bittencourt. O trecho que vai até o Rio de Janeiro recebe o nome de Presidente Dutra (ou Via Dutra). Ela cruza dez das 39 cidades da Grande São Paulo.

No entanto, uma cidade cresceu ao redor dela e especialistas apontam que faltou planejamento.

Crescimento de Guarulhos

A dependência da Dutra para quem vive em Guarulhos é um tema debatido há décadas no município e foi fruto do crescimento da cidade.

Quando a rodovia foi inaugurada em 1950, Guarulhos contava com 35 mil moradores, população menor do que o distrito de São Miguel Paulista, na época, e do que outras cidades como Mogi das Cruzes e Santo André. Sessenta anos depois e com a chegada do aeroporto, a região é a segunda mais populosa do estado com 1,4 milhão de habitantes.

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Roberto Moreno é professor de arquitetura e urbanismo na UNG (Universidade de Guarulhos). Ele aponta que, apesar do crescimento populacional, não houve um planejamento urbano duradouro para a região.

“A Dutra fazia a ligação entre capitais e ao mesmo tempo era uma avenida principal de Guarulhos. Todas as ligações que você tinha do centro para os outros bairros eram feitas pela rodovia”, afirma Moreno, que foi secretário de planejamento urbano de Guarulhos durante a gestão do prefeito Elói Pietá (PT).

Em função da conexão entre São Paulo e o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, a cidade tornou-se um polo industrial e passou a atrair trabalhadores de todo país.

“A cidade não estava pronta para essa virada. Apareceu muito loteamento irregular nessa época, sem nenhum rigor técnico também”, diz Roberto Moreno

Em sua tese de doutorado, Roberto pesquisou o histórico de planejamento urbano em Guarulhos e chegou à conclusão de que faltou considerar a expansão do município a longo prazo.

“Qualquer plano de trânsito e transporte trabalha com dados atuais, mas o planejamento urbano tem que prever de 10 a 20 anos pra frente. Aí é possível observar o que vai acontecer e tomar as medidas antes que a coisa estoure”, afirma.

Sem essas medidas, boa parte da mobilidade da cidade tem conexão com a rodovia.

Dependência da Dutra

João*, 46, mora no bairro Santos Dumont e prefere ir e voltar de transporte público ao trabalho, mesmo tendo um veículo próprio. “Evito dirigir por lá [Dutra] por medo, talvez um trauma de todos os acidentes que eu vi. Por isso eu uso o transporte público, mas é bem frustrante porque é uma demora muito grande, além de caro”, afirma.

João é habilitado há mais de cinco anos, porém nunca dirigiu pela rodovia sentido São Paulo. “Meu medo me limita conhecer outras regiões”, lamenta.

Wilson-Ventura, 24, utiliza a bicicleta como meio de transporte e lamenta a falta de estruturas cicloviarias na cidade @Renan Omura/Agência Mural

Para ele, a Dutra facilitou o acesso dos moradores à capital paulista, mas a via precisa de melhorias urgentes. “Falta de sinalização, limites altos de velocidade. Sou mais andar em bairros. Me sinto mais seguro”, afirma.

O bombeiro Wilson Ventura, 24, mora no bairro Faria Lima e vai ao trabalho de bicicleta. Ele pedala parte do seu trajeto na Via Dutra e lamenta a falta de estruturas cicloviárias na cidade. “Tem uma ciclovia no Bosque Maia, e no bairro Cecap. O resto [da cidade] não tem. E aí temos que usar a rua”, afirma.

Para ele, além da ausência de investimento no modal de bicicleta, a falta de campanhas de conscientização do trânsito é um outro problema.

“Por mais que criassem ciclofaixas, os motoristas não iriam respeitar do mesmo jeito. É preciso conscientizar. Se eles não respeitam nem o motoqueiro, vai respeitar um ciclista?”

Os riscos não são apenas para quem dirige e pedala pela rodovia. A letrista Jessica Gonçalves da Silva, 28, utiliza o transporte público para ir ao trabalho. O ponto mais próximo fica no trecho do Aeroporto Internacional de Guarulhos. No entanto, ela prefere esperar no terminal, pois tem medo de ser assaltada.

“A parte de Cumbica é bem perigosa, tem assalto, é arriscado ficar no ponto. Não tem hora para furto e os motoristas não param. Eu atravesso a Dutra e costumo pegar os ônibus nos terminais”, afirma.

Segundo Roberto Moreno, a falta de segurança também contribui com o número de sinistros na região.

“As pessoas têm medo de atravessar a passarela por causa de assalto e uma série de coisas. Às vezes elas preferem enfrentar a rodovia a pé. O que deve ocasionar maior parte dos acidentes também”, afirma. De acordo com o Infosiga, pouco mais de um a cada três óbitos na Dutra foram de pedestres.

Para ele, uma das soluções para reduzir os sinistros é a elaboração de um planejamento urbano que priorize todos os modais e pedestres.

“A Dutra é boa, porque ela favorece essa circulação regional, mas ao mesmo tempo ela não tem mecanismos para a população atravessar de um lado para outro com segurança”, aponta.

“As passarelas na Dutra chegam a ser distantes até 500 metros uma da outra. O Código de Trânsito Brasileiro diz que deve ser no máximo 100 metros. Caso não seja, o pedestre tem o direito de atravessar onde julgar mais seguro”, diz Diogo Lemos, coordenador de Mobilidade e Ruas Seguras da Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária Global.

Questionada, a CCR afirmou que “no trecho da via Dutra, em Guarulhos, que vai do Km 205,7 ao Km 226,950 são 20 passarelas, uma passarela a cada 1,6 quilômetro”.

A falta de manutenção preventiva nos caminhões é um dos fatores que contribuem com o número de sinistros na região Renan Omura/Agência Mural

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Diogo destaca também que uma ação possível para a cidade é apostar em estratégias que envolvam todas as partes interessadas, visando a redução de velocidade e olhar a escala urbana de forma separada da parte da rodovia.

“É preciso pensar em projetos e planos de mobilidade para as pessoas e não para os automóveis. Pensar quais outros caminhos possíveis de construir, o zoneamento ao redor da rodovia, para controlar a ocupação da população”.

A Agência Mural questionou também a Prefeitura de Guarulhos sobre as ações e os planos em parceria com a CCR para diminuir o número de sinistros na região, mas a Secretaria de Transporte e Mobilidade Urbana apenas informou que busca alternativas para reduzir os congestionamentos por toda a cidade.

Alternativas travadas e o Rodoanel

Guarulhos tem um Plano de Mobilidade Urbana, publicado em 2019. O documento prevê a “priorização do uso do espaço viário pelo transporte público coletivo, pelo transporte ativo e pelos deslocamentos a pé” e sugere intervenções na Via Dutra, como a conclusão da via marginal no entorno do trecho de Bonsucesso.

O Trevo de Bonsucesso, que garante o acesso ao bairro e ao Pimentas, é uma das obras de infraestrutura que precisam ser executadas no curto prazo por terem recebido recursos externos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) Mobilidade.

O documento reconhece as obras feitas pela CCR no trecho que corta a cidade, mas adverte: “um dos trechos mais importantes da rodovia, localizado entre o trevo de Bonsucesso e o PA Maria Dirce, ainda não foi feito. Prejudicando o fluxo de veículos que vem do trevo com destino a São Paulo”.

Falta de passarelas é um dos desafios. Maioria dos acidentes fatais envolveu pedestres @Renan Omura/Agência Mural

Além da conclusão da obra no trevo, a Prefeitura prevê também a ampliação da Linha-13 Jade da CPTM, que atualmente vai até o Aeroporto, para mais quatro estações, com terminal em Bonsucesso. Inaugurado em 2018, a linha ainda não melhorou o acesso de quem vive nas periferias guarulhenses.

Segundo Roberto Moreno, Guarulhos precisa de avenidas estruturais para garantir que a Dutra seja usada pela população apenas para deslocamentos que visem ir para outros municípios. “O plano de mobilidade propõe fazer um sistema que vai dar uma volta no aeroporto, entrar no trevo do Bonsucesso, e criar uma avenida entre a Dutra e Ayrton Senna”, relata.

Além disso, uma das expectativas dos moradores é a redução do tráfego de caminhões, o que esbarra em uma antiga promessa. Guarulhos aguarda a entrega do Trecho Norte do Rodoanel Mário Covas, cuja obra está paralisada desde 2018, com promessa de término para 2023. Por enquanto, quem trafega na região tem acesso apenas ao trecho leste.

A chegada da nova fase do Rodoanel reduziria o tráfego justamente na região mais afetada pelos acidentes e faria com que motoristas de veículos pesados consigam acessar as demais rodovias da região metropolitana sem precisar entrar na capital.


Concessão renovada

Em outubro, a CCR venceu o novo leilão da Dutra e renovou a concessão da rodovia por mais 30 anos. Há a promessa de R$ 14,8 bilhões em investimentos para a via, sendo que R$ 1,5 bi seriam aplicados na região de Guarulhos.

O projeto apresentado pela CCR para o leilão também prevê a adoção da metodologia iRAP de segurança viária na redução de acidentes. O iRAP (Programa Internacional de Avaliação de Estradas) fornece métricas para ajudar as rodovias a reduzirem os sinistros no trânsito.

Em seu anúncio da parceria, a instituição diz que “com investimento bem direcionado em atualizações de infraestrutura e velocidade em toda a malha rodoviária do Brasil” é possível salvar cerca de 13 mil vidas por ano. A concessionária diz que já vem realizando melhorias.

“No trecho da via Dutra, em Guarulhos, entre obras de melhoramento e recuperação, foram construídos 27,6 quilômetros de novas pistas marginais nos dois sentidos da rodovia e 12 quilômetros de faixas adicionais, além da constante manutenção do pavimento, para evitar o surgimento de rachaduras ou buracos”, afirma a CCR em nota.

“É papel do Estado regular as empresas de concessão, para produzir políticas públicas ou ações que reflitam no bem da população. Precisa ter auditoria nas rodovias, para melhorias”, ressalta Diogo, da Iniciativa Bloomberg.

Régis Bittencourt

O lado sul da BR-116, que vai de São Paulo a Curitiba, carregou por anos o apelido de “estrada da morte”, por conta dos graves acidentes que ocorriam ali. Pensando em Região Metropolitana, a alcunha não condiz com a realidade dos dias atuais.

As cinco cidades cortadas pela Régis Bittencourt somaram 130 fatalidades no período entre janeiro de 2018 e outubro de 2021, cinco a menos que o total contabilizado apenas no trecho da Dutra em Guarulhos no mesmo período. A distância entre Juquitiba e Taboão da Serra é de quase 70 km, enquanto a Dutra passa por 21 km dentro de Guarulhos.

Mas são vias distintas. Ao contrário de Guarulhos, a Régis Bittencourt não funciona como uma avenida principal da maioria dessas cidades, à exceção de Taboão da Serra.

Comparando as duas cidades da BR-116 que fazem limite com São Paulo, Taboão tem uma média de 6,25 fatalidades por ano, enquanto Guarulhos, com três vezes mais quilômetros de rodovia, tem uma média de 33,7 óbitos.

Embu das Artes, um pouco mais à frente, soma 9 km da Régis. Famosa pela feira e lojas de artesanatos, a estância turística teve 35 fatalidades no trecho da BR-116 que passa por lá.

Régis Bittencourt, na região sudoeste da Grande SP, passa por cidades com Embu das Artes, Taboão da Serra e Itapecerica @Cleberson Santos/Agência Mural

A artesã Julia Luciana Lara Campos, 40, conta que os embuenses usam a via principalmente para as idas à São Paulo. Ela relata que a maior preocupação quando dirige em direção à capital é a quantidade de caminhões.

“O fluxo de carro é muito grande na BR e se tem algum carro quebrado ou acidente para tudo”, conta a artesã, que brincou quando perguntada sobre o que ela acha que poderia ser feito para melhorar a questão dos acidentes ali. “Como diz meu marido, é voltar a ter trem de carga, assim não tem mais caminhão”.

Segundo José Júnior, Gerente de Operações da Arteris (empresa dona da concessão da Régis Bittencourt) na Região Sul, a via é um “corredor do Mercosul”: “tudo que entra pela região sul do país acaba passando pela Régis Bittencourt para chegar na região sudeste”, diz citando a localização de centros de distribuição na Grande São Paulo.

Ele refuta o “dito popular” de que a Régis Bittencourt seria uma “estrada da morte”, principalmente por conta dos investimentos feitos pela empresa desde o início da concessão, em 2008. A principal obra foi a duplicação da via na região da Serra do Cafezal, já na divisa com o Paraná.

“Se a gente pegar o mapa das fatalidades ele vai estar espalhado, porque as pessoas cometem acidentes em diversos locais”, defende Júnior.

Jackson Evandro é chefe substituto da delegacia da Polícia Rodoviária Federal em Registro (SP) e trabalha na Régis Bittencourt desde 1994, acompanhando de perto as “duas fases” da rodovia.

Ele conta que antes da concessão havia uma quantidade muito grande de colisões frontais, principalmente envolvendo caminhões. De acordo com Jackson, há um “intenso trabalho de fiscalização” na via por parte da PRF, além dos investimentos da concessionária.

“Nós temos um trânsito de 60% e 70% dos veículos de carga, às vezes quando acontece um tombamento, um acidente que tranca a via, mas no geral, em termos de números de mortes. A ‘Rodovia da Morte’ ficou lá no passado”.

Próxima Parada

*No primeiro parágrafo do trecho ‘Dependência da Dutra’ o nome da fonte foi alterado para garantir o anonimato do entrevistado

Essa reportagem foi financiada pelo ICFJ (International Center for Journalists)