Em vigor há quase uma década, a Lei de Cotas (nº 12.711/12) poderá passar por uma revisão até agosto deste ano. O texto estabelece a reserva de vagas em universidades e instituições federais do país para alunos da rede pública, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, e a reavaliação está prevista no artigo 7º da própria norma.
A revisão obrigatória tem como base a análise do funcionamento do sistema de cotas e os impactos que foram produzidos a partir dele. Entretanto, a possibilidade de mudanças ou descontinuidade da política, sobretudo neste ano eleitoral, preocupa defensores das cotas, que avaliam não ser o momento ideal para isso.
O que é a Lei de Cotas?
A Lei de Cotas estabelece que, em todo o Brasil, nos espaços federais – de ensino superior e técnico de nível médio-, no mínimo 50% das vagas devem ser destinadas a alunos que tenham cursado o ensino médio em escola pública.
Dessas vagas, 50% devem ser destinadas a estudantes oriundos de famílias com renda de até um salário mínimo e meio por indivíduo. Atendido esses dois critérios sociais, devem preencher as vagas indivíduos autodeclarados pretos, pardos, indígenas ou pessoas com deficiência (PCDs). Este último grupo foi incluído em 2016, pela Lei 13.409.
“A Lei de Cotas é uma tentativa muito importante de inclusão de figuras pretas, indígenas, periféricas, de baixa renda e pessoas com deficiência nos espaços de educação, onde historicamente houve ausência delas pela estruturação que o racismo se deu na sociedade”, define Débora Dias, 24, covereadora do coletivo Quilombo Periférico.
A distribuição das cotas raciais é feita conforme a proporção dessas pessoas no estado em que a instituição de ensino está inserida.
Para usufruir das cotas, pretos, pardos e indígenas devem apresentar uma autodeclaração, e em algumas instituições, precisam ainda passar por uma comissão de avaliação. Já as pessoas com deficiência têm que apresentar a autodeclaração e um laudo médico.
Em 2012, ano em que a lei foi aprovada, as três universidades federais do estado de São Paulo (Unifesp, UFABC e Ufscar) somavam 2.252 alunos que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas, quantidade equivalente a cerca de 6,5% dos matriculados nas três instituições.
Já em 2020, de acordo com dados mais recentes do Censo da Educação Superior, realizado pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a quantidade de alunos PPI (pretos, pardos e indígenas) nas federais de São Paulo era de 16.656. Isso equivale a 28,4% dos mais de 58 mil estudantes matriculados.
Além disso, a norma integra um conjunto de ações afirmativas previstas no decreto nº 4.886/03, que são voltadas a grupos excluídos da sociedade como modo de reparação – buscando, assim, eliminar desigualdades e segregações. No Brasil, essas ações vêm sendo regulamentadas há cerca de duas décadas.
Em 2003, a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) foi a primeira instituição de ensino a estabelecer, de forma autônoma, um sistema de cotas no vestibular, reservando 50% das vagas para estudantes que tinham cursado o ensino médio em escolas da rede pública.
Depois, em 2004, a UnB (Universidade de Brasília) foi a primeira instituição federal a implantar uma política de ações afirmativas no vestibular.
Confira as outras reportagens da série
Defensores das cotas avaliam avanços
O professor e sociólogo Djalma Góes, 51, avalia que as políticas de ações afirmativas não chegam a transformar a realidade, mas possibilitam o acesso de grupos historicamente excluídos a ações e serviços constitucionalmente previstos. “Embora previstos em leis, esses serviços não estão à disposição [desses grupos]”, lamenta.
Ele defende que, para ocorrer uma revisão da política de cotas, é preciso primeiramente promover e atingir a “equidade que se espera” nos espaços de educação.
“Na medida em que houver de 50% a 56% de negros, pessoas com deficiência e indígenas inseridos na universidade pública, talvez a lei tenha cumprido o papel e possa se falar em equidade. Aí sim será necessária uma revisão”
Djalma Góes, professor e sociólogo
Em 2016, o artigo 7º da Lei de Cotas foi alterado. Embora a reavaliação tenha sido mantida para o período de dez anos, não consta a quem caberá tal responsabilidade. Antes, estava sinalizado que a tarefa seria promovida pelo Poder Executivo.
Além da falta de clareza em relação ao órgão competente para isso, Góes aponta outras questões que indicam que não seja a melhor hora para a lei passar por uma análise – a começar pelos dados que devem ser utilizados como base da revisão, conforme consta no artigo 6º do texto.
“Acredita-se que ela será feita com base [nos dados de que os impactos foram satisfatórios ou não], se é que o Poder Executivo produziu algum tipo de estudo sobre o acesso”, explica Góes, enfatizando desconhecer dados de pesquisas oficiais.
Para ele, caso ocorra uma alteração na lei e ela for negativa, supostamente vindo a pôr fim às políticas de cotas, o Brasil só confirmaria que é um país racista. “Que segrega e produz o genocídio contra a população preta e indígena. E também a exclusão das pessoas com deficiências e dos estudantes de escola pública”, frisa o professor.
A covereadora Débora Dias também concorda que não seja o melhor momento para a norma passar por uma revisão, já que o país está em ano eleitoral e passa por uma “ascensão de conservadorismo”, na qual a revogação das subcotas raciais é um dos pontos colocados em pauta.
Projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, como o PL nº 4125/21, visam alterar o sistema de cotas. A proposta revogaria os artigos 3º e 5º da lei e a reserva de vagas baseadas em cor ou raça. Assim, as cotas para ingresso no ensino superior serão destinadas exclusivamente a estudantes de baixa renda.
Débora acredita que uma mudança negativa no sistema traria “perdas imensas” para o acesso dos jovens ao ensino superior, que já enfrentam dificuldades por conta do atual cenário político e pandêmico.
“Em 2020 e 2021 houve baixa significativa no número de inscritos no Enem. Ao mesmo tempo, ocorre o avanço da reforma do ensino médio, por conseguinte a reforma trabalhista e a reforma previdenciária, que fecha um dos piores cenários para ser jovem no Brasil”, diz.
Ela também compartilha a própria experiência como um exemplo da importância de ingressar no ensino superior. “Minha bisavó foi uma mulher preta que não estudou e trabalhou como empregada doméstica. Minha avó e minha mãe também”, conta.
“Rompo com essa lógica de existência dentro da minha família. Sou a primeira que ingressa no ensino superior em uma universidade pública”
Débora Dias, covereadora
Ela também defende que histórias como a dela se multipliquem no Brasil a partir do acesso ao ensino superior.
Necessidade da bolsa permanência
O teólogo e filósofo Frei David Santos avalia que a cota é uma medida radical para “tentar mudar uma situação imposta pela classe dominante e que se perpetua no tempo”.
Ainda assim, embora a reserva de vagas no ensino superior tenha ajudado a população afro-brasileira a ocupar as universidades, a lei por si só não é suficiente para reparar os danos provocados pela desigualdade social e racial no país.
“São vários os desafios que nos impedem de ocupar lugares de poder. Isto devido a crueldade do sistema que não nos quer nesses espaços. Podemos identificar que um dos desafios é o econômico”, aponta o teólogo.
Santos é diretor executivo da ONG Educafro Brasil, que já auxiliou mais de 100 mil pessoas negras e de baixa renda a ingressar no ensino superior. Ele conta que, além das cotas nas universidades, também é necessário incluir na lei a bolsa permanência, que corresponde a bolsas de alimentação e moradia aos estudantes.
“São tantos os atravessamentos que atingem a população negra no Brasil que é preciso dar todos os suportes necessários para que esses jovens consigam concluir a graduação de forma digna”, discorre o teólogo.
“Ninguém consegue estudar com fome ou em situação de rua. Portanto, lutamos fortemente para que essa pauta da permanência seja atendida. Não podemos negar que este é um fator que impede nossos jovens de permanecerem na universidade”, acrescenta.
Instituído em 2013, o Programa de Bolsa Permanência (PBP) é mantido pelo Governo Federal e destina a concessão de bolsas para estadia de estudantes de graduação em instituições federais de ensino superior e que estejam em situação de vulnerabilidade socioeconômica, em especial alunos indígenas e quilombolas.
As inscrições no programa são realizadas através do MEC (Ministério da Educação) e não estão vinculadas à Lei de Cotas.
O futuro das cotas
A Agência Mural entrou em contato com a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, para questionar se a revisão ocorrerá no mês de agosto e se a pasta possui dados sobre os impactos e resultados gerados pela lei, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.
Também está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.788/21, que visa transferir a revisão da política de cotas para o ano de 2042.