Eduardo Machado/Agência Mural
Por Paulo Talarico | 05.06.2021
Reportagem: Eduardo Machado e Daniel Brito
Edição: Cleber Arruda
Publicado em 05.06.2021 | 6:26 | Alterado em 05.06.2021| 6:26
Em Salvador, comunidade cobra falta de diálogo com governo sobre futuro de parque e organiza abaixo-assinado contra processo de concessão
Tempo de leitura: 8 min(s)Localizado entre o bairro de Pirajá e o subúrbio de Salvador, o Parque São Bartolomeu é carregado não só de muito verde, mas também de muita história. O local, junto com outros parques naturais da Bahia e de outros cinco estados do país, está prestes a ser concedido à iniciativa privada, o que tem gerado preocupação em ambientalistas e na própria comunidade que frequenta o espaço.
Uma das principais reclamações é sobre a falta de diálogo dos órgãos estaduais que cuidam do parque, como a Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia) administradora do local, e o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia).
“Até o momento, não vi nenhuma discussão, nem com o conselho gestor da área, nem com as entidades”, afirma Valdeci Teixeira Barbosa, 63, conhecida como Mameto Val, mameto de nikices da casa religiosa Mukundewá, em Alto de Coutos.
Um abaixo-assinado promovido pela Iniciativa Popular Trilha das Flores, grupo responsável pela comunicação popular sobre o parque, quer reunir 2.500 assinaturas contra a concessão. Até o momento, foram colhidas 2.299 que representam insatisfação com o processo.
Atuante nos bairros de Plataforma e São João do Cabrito, o MTD (Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos) vem denunciando em rede com terreiros de Candomblé, grupos culturais e ambientais do Subúrbio Ferroviário a falta de escuta por parte do Governo do Estado e do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), órgão federal financiador do projeto.
Para o coordenador nacional da entidade, Juan Gonçalves, 27, a ausência do diálogo com as comunidades tem sido favorável ao cenário de privatização.
“As comunidades não foram ouvidas não, inclusive a rede de religião de matriz africana do Subúrbio Ferroviário está tentando mover o Ministério Público para aumentar a pressão junto ao Governo do Estado a fim que haja mais diálogo”, revela.
No último dia 28 de maio, o BNDES apresentou o plano de estudo sobre a viabilidade econômica do parque, em uma reunião com a coordenação da APA (Área de Proteção Ambiental) São Bartolomeu/Bacia do Cobre, onde o parque está inserido, e algumas lideranças comunitárias.
Segundo Juan, o acordo apresentado foi o de lançar o edital de concessão e licitação para uso do parque a partir do segundo semestre deste ano. “Precisamos construir alternativas para denunciar esse processo. Defendemos o parque porque sabemos que é a defesa do nosso território. Ao invés de pensar em privatizar, deveriam investir mais na revitalização das águas e em pontos centrais de cultura”, destaca.
Elionaldo Gomes, 40, presidente da Assmoilha (Associação de Moradores de Ilha Amarela), um dos bairros abrangidos pelo parque, também diz não ter sido comunicado a respeito do processo.
“Ficamos sabendo com amigos do parque de Pituaçu, onde a situação de privatização está avançada. Gravamos um vídeo sobre essa possibilidade, afirmando que éramos contra porque não haviam nos consultado. Foi aí que começaram a mandar convite para algumas organizações”, relata.
O líder comunitário, que também é um dos conselheiros da APA, espaço composto por organizações da sociedade civil e representantes do poder público, participou da apresentação do projeto. Ele afirma haver uma falta de atenção ao extrativismo local e a ausência de uma ação direcionada às áreas degradadas ao redor do parque.
“Estão tratando como coisas pequenas o extrativismo local, as hortas comunitárias. Não apresentaram o que fariam com as áreas degradas ao redor do parque”, avalia Gomes.
“Vimos que o interesse deles não é no parque como todo, querem as áreas que já estão em preservação. Por que não pegaram a área geral para fazer manutenção com participação do povo que vem cuidando há anos e anos sem receber um tostão?”, questiona Gomes.
Por ser formado por uma grande reserva de diversidade natural, o extrativismo local é considerado a garantia de renda e subsistência para muitas famílias, segundo a dona de casa Adair Oliveira, 83, moradora da região.
“É um meio de a população que mora aqui ganhar dinheiro porque há frutos de todos os tipos. Muitas pessoas aqui vivem e sobrevivem disso, através das madeiras, frutas, folhas, terra, pescarias. Se privatizarem, como entraremos? Teremos que pagar?”, indaga.
O São Bartolomeu não é o único colocado nesta condição. Ainda no final de 2020, o BNDES lançou o Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais. A entidade planeja dar suporte à desestatização de serviços de visitação a esses locais nos estados da Bahia, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Tocantins.
Em Salvador, os parques de Pituaçu e o Zoobotânico também foram escolhidos pelo programa. No restante do estado, foram selecionados os parques estaduais da Serra do Conduru (localizado em área dos municípios de Ilhéus, Itacaré e Uruçuca) e o das Sete Passagens, no município de Uruçuca.
Na prática, a atitude permitiria que empresas privadas pudessem administrá-lo, o que é contestado pelas comunidades locais. Segundo o BNDES, esse programa de concessões “vai atrair investimentos para aprimorar a qualidade dos serviços prestados”.
“Os contratos vão prever melhorias desde investimentos básicos em infraestrutura, como banheiros, sinalização ao longo das trilhas e aparelhamento dos centros de visitantes, até o desenvolvimento de novos atrativos e equipamentos de recreação de acordo com a vocação de cada parque e com foco no ecoturismo e conservação ambiental”, diz o superintendente de Governo e Relacionamento Institucional do órgão, Pedro Bruno Barros de Souza, em nota publicada no site da instituição.
Procurada, a Conder, que administra o Parque São Bartolomeu, disse que as questões relacionadas ao processo de concessão deveriam ser tratadas com o Inema. O órgão ambiental, por sua vez, por meio da sua assessoria de comunicação, respondeu que não houve atualizações após a visita de uma comitiva do BNDES ao parque, realizada em fevereiro, e também que as tratativas relacionadas ao projeto seguem em avaliação com o Governo do Estado.
A pasta disse ainda que os bens e serviços a serem explorados serão devolvidos à administração pública ao final do contrato, seja ele de 15, 20 ou 30 anos. “Deste modo, não trata-se de ‘venda do parque’ ou ‘privatização da natureza’ e sim de estudos de viabilidade para a concessão dos serviços turísticos do parque, respeitando as questões socioambientais”, afirma, em texto publicado em seu site.
“No caso do programa em questão, a proposta é elaborar estudos para analisar a viabilidade de concessão, por tempo limitado, do uso de uma parte da área dos parques (a ser identificada nos estudos) – a chamada área de uso público – ou uma concessão de serviços turísticos visando à visitação e melhoria das condições de infraestrutura de visitação e recreação para o público em geral”, prossegue.
O Inema disse também que as comunidades que frequentam os parques também serão ouvidas. “Serão identificados os principais atores sociais e organizações representantes da comunidade que tenham conexão e que sejam afetados por um projeto como esse. Na sequência haverá um processo de escuta estruturada, em que serão identificados os principais anseios, pontos de atenção e preocupações comunitárias quanto à Unidade de Conservação”, finaliza.
Historicamente, o parque sempre serviu para encontros ecumênicos, principalmente, por praticantes de religiões de matriz africana por ser constituído de flora, fauna, águas e pedras sagradas, como a de Obaluaiyê, Tempo e de Xangô ou as cachoeiras de Oxum, Nanã e Oxumar.
Nascida e criada no parque, Adair Oliveira relembra a época em que o local não tinha uma estrutura cercada. Segundo ela, dessa maneira, as pessoas vivenciavam mais o espaço.
“Eu nasci e me criei bem pertinho da cachoeira de Oxum, a água era maravilhosa, tomava banho, lavava roupa e bebia água. Aqui era só mato, tinha a linha do trem, a pista veio depois. Hoje em dia o pessoal colocou esgoto, cercaram tudo, tombaram o parque, mas acabaram com tudo”, diz.
E lamenta: “A água de tão suja faz subir uma espuma branca com um cheiro terrível, você não aguenta. A única cachoeira que não tem esgoto é a de Oxumarê, porque ela nasce no meio da ladeira em uma moita de bambu escondida. As outras, o pessoal destruiu”.
De acordo com Adair, tudo que se dá dentro do parque, os moradores aproveitam para alimentação e venda. “Isso aqui é muito importante e nós moradores damos valor, o que precisa ser feito aqui são os poderes públicos cuidar mais e estar mais próximo da Comunidade”, conclui.
Nesse feriado de Corpus Christi, a dona de casa Maria Inês Gonçalves, 74, aproveitou para passear, colher folhas medicinais nas trilhas verdes do São Bartolomeu e prosear na praça da Cachoeira de Oxum com a família.
Maria Inês separa as folhas colhidas entre os dedos e explica suas funções: “Essa daqui é dente de leão, essa aqui é donzélia são folhas boas para dores e inflamação e dizem também servem para diabetes.”, desconfia dona Maria. E complementa: “Essa daqui é o Arrozinho, uma erva muito boa para quentura intestinal e pancada nos nervos, basta esquentar e enrolar que a dor passa”, ensina.
Para ela, a concessão do parque pode representar mudança na relação com as plantas. “A medicina natural vai acabar, porque as pessoas não dão valor e aqui é um jardim de folhas de remédio”, pontua.
Sua filha, a agente de higienização hospitalar Arlene Gonçalves, 44, está dividida a respeito da questão. “Vai tirar a oportunidade de todos terem essa convivência ao ar livre, as crianças brincarem e conhecerem uma planta nativa que às vezes não tem oportunidade lá fora, e por outro lado, privatizar vai melhorar em termos de segurança”, destaca.
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Essa relação cultural do meio ambiente nas rotinas, manifestações e atividades dos moradores demarca o Parque São Bartolomeu como um importante instrumento da memória histórica, de patrimônio imaterial e bem simbólico às comunidades que formam o Subúrbio Ferroviário de Salvador.
Mãe Val pontua a relação íntima entre cultura local e o meio ambiente, vínculos mantidos desde a infância.
“Fui criada com minhas irmãs fazendo piquenique tomando banhos na Cachoeira de Osun. Lembro que carregava quatro latas de águas por dia do parque para encher o purrão da nossa casa. Essa era a água que saciava a nossa sede. Pescávamos pitu, mariscos, caranguejos, siris, aratus para nos alimentar no manguezal que existia no parque”, relembra.
“O meu terreiro é completamente descendente da natureza ambiental do Parque São Bartolomeu. Necessito de suas águas para manter minha religião viva, das suas terras, de suas matas, de suas pedras, da sua beleza e de suas estórias. Esse vínculo cultural e religioso tem sido a minha luta constante para que a preservação ambiental cultural e religiosa não se perca como a história indígena”, pontua.
Com 75 hectares, o Parque São Bartolomeu é considerado uma das maiores reservas de Mata Atlântica em área urbana do Brasil; instituído como parque em 1978 por meio de um decreto municipal.
O parque integra a Bacia do Rio do Cobre, e abriga na parte divisória com o bairro de Pirajá a Barragem do Cobre, cujas nascentes localizam-se entre os bairros de Fazenda Coutos 3, Valéria, Paripe, Periperi, Ilha Amarela e Pirajá.
A barragem do Cobre foi concluída pelo Governo do Estado em 1931 e integrava o primeiro sistema de abastecimento de água de Salvador, que abasteceu vários bairros do subúrbio até o ano de 2005. Hoje, encontra-se abandonada.
Símbolo identitário, de luta e resistência do povo baiano, o Parque São Bartolomeu além de ser um patrimônio desconhecido, é palco de fatos importantíssimos para a historiografia do Brasil como a “Batalha de Pirajá”, em 8 de novembro de 1822, conhecida por ser o ápice na guerra pela independência do Brasil.
Morada de Tupinambás, o atual parque antes chamado de Floresta do Urubu, logo tornou-se um ponto distinto com africanos fugitivos que ali encontraram proteção e refúgio. Organizando-se por volta de 1826 no chamado Quilombo do Urubu, com Negra Zeferina à frente, uma das principais lideranças de insurreições negras do século XIX.
Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.
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