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Quase centenários, idosos das periferias contrariam estatísticas e relembram quando ‘era tudo mato’

Por: Estela Aguiar e Suzana Leite

Na Cohab Educandario, na zona oeste de São Paulo, Dorca Nunes Amaral, 93, gostaria de ter nascido nos dias de hoje. “Hoje em dia, o homem não manda na mulher, ela trabalha”, avalia. Aos 104 anos, João José Jacó aconselha: “Não duvide de ninguém”, falando do Capão Redondo, na zona sul da capital.

Para chegar em Mauá, na Grande São Paulo, ainda na década de 1930, Thiago Ayres da Silva, 93, passou por uma viagem que contou com dias andando de cavalo no norte do Brasil, enquanto Vicente Bernardo, 97, relembra que São Mateus, na zona leste, só foi ter esgoto nos últimos 30 anos.

Juntos, eles somam 386 anos e contrariam as estatísticas do que é viver em um território longe do centro.

De acordo com os dados da Rede Nossa São Paulo revelados no Mapa da Desigualdade 2020, a expectativa de vida é bem diferente para uma pessoa que vive na periferia em comparação a um bairro rico da região central.

No Jardim Ângela, a idade média ao morrer foi de 58,3 anos, enquanto no Jardim Paulista, a média foi de 81,5 anos.

João olhando o bairro, na zona sul Suzana Leite/Agência Mural

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Nesta sexta-feira (1º) é celebrado o Dia Internacional do Idoso, criado pela Onu (Organização das Nações Unidas) para “sensibilizar a sociedade mundial para as questões do envelhecimento”.

Para falar um pouco sobre envelhecer nas quebradas, ouvimos estes quatro exemplos de idosos que construíram histórias centenárias nas periferias, passaram pela fase mais dura da pandemia e avaliam a situação de seus bairros.

MAIS LIBERDADE

Nascida em Igarapava, interior de São Paulo, Dorca Nunes Amaral, 93, veio para cidade grande em busca de trabalho. Pisou na terra da garoa pela primeira vez em 1945, com 17 anos. Há 25 anos, ela reside no bairro Cohab Educandário, zona oeste da capital.

“Eu vim para São Paulo novinha e fui doméstica, porque eu não conhecia nada, minha irmã já trabalhava como empregada. Então eu continuei e depois fui trabalhar na fábrica”, diz.

Com mais de 90, Dorca vive na Cohab Educandario @Estela Aguiar/Agência Mural

Somente com a quarta série do ensino fundamental, Dorca trabalhou em uma fábrica de rádios e lá conheceu o marido, com quem casou aos 22 anos. Com quatro filhos, ela largou o emprego para cuidar das crianças.

“Pra onde eu ia com quatro filhos? Na época não tinha camisinha não, não tinha jeito, quando eu via, já estava grávida. Aí depois do quarto, ele mandou o médico cortar as trompas.”

Hoje, viúva, ela fala como a mulher tem mais liberdade.

“Eu aguentei todos esses anos por ser submissa, mas eu queria ter nascido agora e ter essa liberdade. Hoje em dia, o homem não manda na mulher, ela trabalha.”

Sobre o bairro em que mora na periferia, dentro do distrito de Raposo Tavares, ela aponta dificuldades para o dia a dia de quem tem mais idade. “O que acho ruim aqui e dificultoso, é tudo longe. Banco é longe e eu não tenho condução própria, sabe?”, questiona. Mas diz ser a única ressalva sobre a Cohab Educandario. “O resto é tudo ótimo, é sossegado”, afirma.

AMIZADE DE DÉCADAS

Thiago e Vicente cresceram na região entre São Mateus, na zona leste, e Mauá, na Grande SP @Arquivo Pessoal

Thiago Ayres da Silva, 93, chegou em São Paulo ainda na infância, em 1937. Parte do trajeto foi usando um transporte que era popular na época. “De Tocantins a Goiânia, gastamos mais de um mês a cavalo”, diz.

Morador de Mauá, na Grande São Paulo , conta que a família conseguiu a primeira televisão do bairro do Jardim Santo André. “Morávamos em um cômodo, ligava a TV e vinha todo mundo, as crianças ficavam sentadas no chão assistindo. Elas não saiam de lá”, recorda.

“Das cinco casas que tinha lá, eu fui o primeiro a morar ali. E o pessoal quase não comprava as casas, ia comprar sem água?”, comenta Thiago.

O Jardim Santo André é um bairro de Mauá que fica colado ao limite com a zona leste da capital, onde está o bairro de São Mateus.Foi na região que ele conheceu e formou uma amizade que dura décadas com Vicente Bernardo, 97.

Vicente saiu de Três Corações, cidade com menos de 100 mil habitantes em Minas Gerais, e veio para São Paulo com 17 anos. Morou em Santo André, e de lá, prestes a construir uma família, chegou no bairro de São Mateus, zona leste de São Paulo.

“Aqui era uma bagunça, não tinha asfalto, não tinha luz, não tinha água. A água era no poço. Aqui todo mundo sofreu um pouco com a moradia. Tudo era terra, até que teve o esgoto em 1995”, relembra.

Aposentado por idade, Vicente trabalhou longos anos como eletricista e assim pôde cuidar de uma família grande com 15 filhos ao total, mas só com 8 vivos.

“Não cheguei a estudar porque não tive tempo. Estava trabalhando, a obrigação era primeiro trabalhar. Trabalhei com fiação, na Nitro Química e tecelagem”, conta.

Com um senso de humor afiado, Vicente é apegado a um velho ditado popular. “Conselho não se dá para ninguém, se a pessoa aceita o que a gente fala, ela põe na mente para não fazer coisas erradas, porque a coisa errada dá pro juízo mais tarde”, argumenta.

CENTENÁRIO DO CAPÃO

Suzana Leite/Agência Mural

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Suzana Leite/Agência Mural
Suzana Leite/Agência Mural

O alagoano João José Jacó é um centenário de 104 anos. Morador do Parque Fernanda, região do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, ele tem um negócio próprio com a esposa Maria Avelino, 77, na produção e venda de xarope caseiro para complementar a renda.

Em sua terra natal, João trabalhou com agricultura até os 70 anos, quando decidiu se mudar para São Paulo em 1998 para ficar próximo aos familiares. Trouxe consigo a cultura, e constitui seu negócio.

“Eu gosto do povo, muita gente me ajuda quando preciso pegar remédio ou ir ao médico, a vizinhança sempre está à disposição”, comenta.

Ativo, João afirma que a lembrança mais bonita vivida por ele foi “o dia do meu casamento, foi o melhor dia da minha vida, quando a vi entrando na igreja com aquele vestido branco, alargou o sorriso’’, afirma. Ele e Maria estão juntos há mais de 60 anos e se casaram ainda em São José da Laje (AL).

Quando pensa nas próximas gerações, ele diz passar para os jovens o mesmo conselho que um dia recebeu do seu pai. “Não duvide de ninguém, nem teime com ninguém e se tiver vontade de atravessar um rio, chegue à beira dele e diga assim: Cheio eu achei, cheio eu deixarei, quando secar, eu passarei.”

COVID-19

Thiago ficou mais de um ano sem sair de casa, para se proteger da pandemia @Arquivo Pessoal

Os idosos estão entre as principais vítimas de casos graves e de mortes por Covid-19. Um estudo internacional com participação da FioCruz, avaliou 178 mil pacientes no Brasil, sendo 33 mil com diagnóstico confirmado para a doença.

Atualmente no país para proteger os idosos da variante delta do coronavírus, os estados já iniciaram a terceira dose de reforço da vacina. A cidade de São Paulo está vacinando pessoas com 70 anos ou mais que já tomaram a segunda dose ou dose única há mais de seis meses.

Como forma de se proteger, Dorca ficou isolada em seu apartamento, sem receber visitas.

“Eu fiquei um ano e oito meses aqui dentro sem sair de casa. Não ia nem lá em baixo e até hoje eu não vou ao supermercado. Peguei um trauma de andar na rua, sempre tenho meu álcool em gel”, conta. Defensora feroz do SUS (Sistema Ùnico de Saúde), ela já está imunizada com as duas doses. “Agora eu vou tomar a terceira”, completa.

O mesmo aconteceu com o Thiago, que preferiu se resguardar e sair somente para receber sua aposentadoria. “Eu fiquei em casa, e usava máscara. Quando estava matando muita gente porque estava perigoso, eu só ia no banco no dia do pagamento.”

OS IDOSOS EM SÃO PAULO

Rádio antigo guardado por Thiago, 93 @Arquivo Pessoal

Segundo um estudo feito pela prefeitura de São Paulo em 2019, a população idosa corresponde a 15% da população da capital. Para a assistente social, Tamires Santana de Carvalho, 33, a realidade do idoso residente nas periferias não é nada fácil.

“Geralmente são pessoas que trabalharam por muito tempo realizando atividades com serviços gerais. Poucos são aqueles que conhecem os seus direitos e as atividades que existem no bairro”, explica.

Bacharel em serviço social, Tamires trabalha em uma Organização da Sociedade Civil como gerente do núcleo de convivência de idosos na região do Campo Limpo. O núcleo é um convênio entre a prefeitura de São Paulo e a Secretaria de Assistência do Desenvolvimento Social. O atendimento está sendo para 100 idosos no total, 60 são atendidos presencialmente e 40 a domicílio.

Durante o período da pandemia que o núcleo ficou fechado, os atendimentos seguiram de forma remota por meio de ligações e grupos para os membros em um aplicativo de mensagem.

“Para melhorar a situação desses idosos, é necessário políticas públicas e pensar em uma construção para que o idoso possa ter melhores condições de vida,” completa.