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Agência de Jornalismo das periferias

Por: Livia Alves

Arte: Magno Borges

Edição: Paulo Talarico

Publicado em 29.02.2024 | 14:36 | Alterado em 29.02.2024| 16:08

RESUMO

Moradores das periferias relatam obstáculos para conseguir medicamentos usados para diversas doenças

Tempo de leitura: 7 min(s)
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A cannabis medicinal, conhecida popularmente como maconha, tem mostrado diversos resultados positivos no tratamento de transtornos mentais, dores crônicas, epilepsia e cuidados paliativos. Desde janeiro do ano passado, uma lei no estado de São Paulo permite a inclusão no medicamento à base de canabidiol no SUS (Sistema Único de Saúde) de forma gratuita.

Porém, um ano depois, nenhum paciente conseguiu o tratamento pelo SUS, pois a licitação ainda está em fase de conclusão. Enquanto isso, nas periferias de São Paulo, moradores que buscam o tratamento relatam driblar diversos obstáculos para conseguir o medicamento.

Na época em que a lei foi sancionada, a previsão era de que a distribuição iria se iniciar em 45 dias, o que não aconteceu. Apenas no dia 26 de dezembro de 2023 o governo publicou no Diário Oficial do Estado o decreto que regulamenta o fornecimento. O pedido será avaliado pela Secretaria Estadual de Saúde, mas ainda não entrou em prática.

Medicamento está previsto na legislação paulista, mas ninguém obteve tratamento @Abrace

Érika Leilaine, 25, mora no Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, e conta que mais de uma vez tentou buscar o tratamento alternativo para questões psicológicas e até hoje não obteve sucesso.

“Não consegui pedir o tratamento com cannabis, tomo remédios para ansiedade e depressão que dão muitos efeitos colaterais”, conta a moradora. “Os médicos antes de mais nada dizem que o canábis pode ser prejudicial, mas acho que eles já dão esse diagnóstico por preguiça e falta de pesquisas aqui no Brasil.”

No Jardim Ângela, também na zona sul, o barman Wigor Palácio Lindoso, 32, sofre com as constantes crises de ansiedade, e teve que buscar soluções por fora do atual sistema para conseguir tratamento com a maconha.

‘Compro com uma amiga que produz em casa. Ela tem licença para produzir, mas é problemático não ter um profissional confiável para me passar a dosagem certa e ter que dividir o remédio dela comigo’

Wigor Lindoso, morador do Jardim Ângela

Criminalização

Um dos problemas, segundo entrevistados pela Agência Mural, é a criminalização do uso da planta, mesmo que para fins medicinais. Há pacientes que querem pedir o tratamento, mas buscam formas alternativas por medo de serem discriminados ou considerados criminosos.

Médico psiquiatra geral e forense, Wilson da Silva Lessa Júnior, 46, conta que o Canabidiol, substância química encontrada na maconha, não traz risco de dependência como outros remédios usados em tratamentos.

“A não regulamentação do plantio de cannabis no Brasil é um dos motivos da dificuldade de acesso dos pacientes que precisam”,

Wilson Lessa, médico psiquiatra

“O Canabidiol [CBD] não tem nenhum risco de dependência. Já o THC (Tetrahidrocanabinol) em dosagens altas (acima de 20 mg/dia) apresenta um risco de dependência, bem menor do que os benzodiazepínicos e opióides”, afirma o médico que é também professor do curso de medicina da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) nas disciplinas de psiquiatria e biomedicina.

O QUE SÃO Benzodiazepínicos e Opióides?

Benzodiazepínicos são medicamentos com amplo índice terapêutico que apresentam, ainda, propriedades anticonvulsivante, relaxante muscular, porém, seu uso frequente pode causar mau funcionamento do corpo e diminuir a qualidade de vida. 

Já os Opióides são analgésicos potentes que causam uma sensação exagerada de bem estar. Ambos os medicamentos são altamente viciantes. 

 

O QUE É THC?

O THC (Tetrahidrocanabinol) é a principal substância psicoativa das plantas do gênero Cannabis. Já o CBD (Canabidiol) é a substância química que constitui boa parte da planta, chegando a 40% – ela é responsável pelos efeitos calmantes no sistema nervoso central podendo contribuir para reduzir a ansiedade e melhorar a qualidade do sono.

Ele ensina sobre o sistema canabinóide e perspectivas terapêuticas no uso da cannabis sativa e também atuou como professor no curso “Uso Terapêutico da Cannabis Sativa” abordando o tema “Ansiedade, Saúde Mental e a Cannabis sativa L.”. O curso é disponibilizado gratuitamente pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) no canal MovReCam [Movimentos pela Regulamentação da Cannabis Medicinal], criado pelo Padre Ticão e Elisaldo Carlini.

O psiquiatra conta que os medicamentos canábicos podem ser receitados e, dependendo do conhecimento que o profissional tenha sobre a medicação, a indicação torna-se uma ferramenta de extrema segurança e eficácia.

Atualmente, a recomendação dos remédios feitos com maconha são receitados em casos de solicitação dos pacientes ou quando os remédios tradicionais não têm o efeito desejado ou efeitos colaterais fortes.

Marcha da Maconha em São Paulo com cartazes pela liberação do medicamento @Roberto Parizoti/Fotos Públicas

Por outro lado, Lessa alerta que são poucos os estudos que comprovam a eficácia do tratamento de ansiedade e depressão com canabinóide.

“Os níveis de evidência de eficácia ainda são baixos. Todavia, começam a aparecer alguns estudos mais robustos e animadores para canabinóides em Transtorno de Ansiedade Social e Transtorno de Ansiedade Generalizada”, observa.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2022 a Anvisa aprovou mais de 20 produtos de maconha no Brasil sendo 9 a base do extrato Cannabis Sativa e 14 de canabidiol.

Os poucos que conseguem

Juliana Sudario, 27, mora no bairro Vila Império, no distrito de Cidade Ademar, e conta que teve sorte. Uma equipe médica chamada Cannabis de Caridade resolveu fazer um mutirão de tratamento com cannabis para todos que quisessem na região da Praça da Árvore, zona sul de São Paulo.

Durante o processo, o grupo disponibilizou o óleo e atendimento médico. Porém, como a procura foi alta, Juliana sentiu uma falta de assistência e optou por interromper o tratamento.

“Fazia como o recomendado, porém, depois de um tempo passei a sentir dor de cabeça. Fomos orientados a entrar em contato com a equipe caso houvesse efeitos colaterais, mas como era quase o bairro inteiro passando com eles, não consegui atendimento, então parei”, conta.

Apesar do ocorrido, Juliana lembra que a experiência foi positiva e afirma que o processo ajudou a muitas pessoas que vivem próximas ao bairro da Praça da Árvore. “Aprendi muito com eles e com todo o processo de acolhimento”, lembra.

Coletivo tem atuado de forma itinerante para levar atendimento @Divulgação

O Cannabis Caridade é uma equipe criada por Vanessa Matalobos, 51, que é médica pediatra e trabalha com neurologia adulto e infantil, em parceria com Cynthia De Carlo, 54, cirurgiã dentista.

Esse trabalho é um projeto itinerante que, atualmente, se encontra na 5ª edição. O  primeiro lugar das atividades foi no Rio de Janeiro, depois São Paulo, São Pedro da Aldeia, Brasília e agora Cabo Frio. “A cada Cannabis Caridade atendemos cerca de 40 pacientes, onde precisam vamos”, afirma Cynthia, que é colunista do Sechat, portal de notícias sobre a erva.  

O tratamento é feito sobretudo com pessoas que têm prescrição médica. A médica afirma que o coletivo não tem como objetivo debater a legalização da maconha, e sim levar o tratamento.

“Não somos ativistas, somos médicos, dentistas, fisioterapeutas, enfermeiras. Uma equipe multidisciplinar que não visa a forma recreacional”, ressalta Vanessa.

‘Nós temos hoje o papel de tirar o “pré” do “conceito”, para que com isso a gente possa mostrar a realidade dos fatos que temos das famílias tratadas’

Vanessa, integrante do Cannabis Caridade

O processo legal

Bruno*, 32, chegou a pedir o remédio devido a crises e hiperatividade, porém, o caminho era muito complicado e não tinha condições financeiras para arcar com um advogado.

“Tentei, mas a burocracia está imensa”, afirma Bruno*, morador de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. “Se não for caso grave então nem se fala. É algo com um potencial muito bom, mas por hipocrisia e rabo preso, o governo fica nessa de não legalizar. O pessoal tem que entender que legalizar é diferente de liberar, né?”.

Médico vê bons resultados para algumas doenças @Roberto Parizoti/Fotos Públicas

Seguindo o mesmo caminho que Wigor Lindoso, Bruno passou a se tratar com o óleo a partir de um conhecido que produz de forma caseira. Ele faz a própria dosagem e mantém o acompanhamento psicológico.

“Comecei do ‘jeito errado’. Experimentei uma vez na casa de um amigo, comecei a consumir aos poucos e depois fui falar com a psicóloga, mas mantenho o acompanhamento e monitoro quando uso, o que acontece no dia e no dia seguinte. Sempre pra ver se não tenho alguma reação ruim”.

Bruno tem medo de que a exposição o leve a perder o emprego ou ser denunciado e preso por precisar de um tratamento. “Conheço pessoas que têm dores constantes, que têm problemas mentais e tomam vários remédios para aliviar e ficam viciados. Não entendo porque as pessoas têm medo de uma planta que só serve pra curar”.

Segundo Erik Torquato, 40, advogado na Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas atuante no Estado de São Paulo, a Constituição Brasileira estabelece que todos têm direito à saúde e ao uso dos tratamentos, desde que orientados por médicos e com consentimento dos pacientes.

“Todas as pessoas possuem direito subjetivo de usar o remédio que melhor for indicado para manutenção da própria saúde, sendo dever do estado garantir o acesso ao tratamento”, diz Torquato.

Protesto aponta criminalização como problema para conseguir tratamento @Roberto Parizoti

“Independente de classe social, se uma pessoa necessita de extratos da maconha para garantir a manutenção da própria saúde, é dever do estado garantir o acesso.”

O advogado ainda afirma que, no caso da dificultação do acesso aos medicamentos, o paciente tem possibilidade de entrar com uma ação judicial. No entanto, é um processo longo e difícil que, muitas vezes, leva o paciente a buscar métodos alternativos para conseguir o medicamento.

Torquato observa que o cidadão pode ganhar o processo, mas posteriormente pode ter de entrar com uma outra ação para que a decisão judicial seja cumprida.

Esses processos são demorados e tendem a aumentar o sofrimento dos pacientes, em especial os que se encontram em vulnerabilidade social.

‘A via judicial é demorada, burocrática e o cidadão enfrenta, até mesmo, uma resistência do estado em cumprir as decisões judiciais’

Erick Torquato, advogado

“Esse é um dos motivos que levou muitos a recorrerem ao cultivo doméstico da maconha para manutenção de seus tratamentos.”.

Segundo o advogado, o “pânico moral” contra a planta e com a palavra “maconha” também tem responsabilidade quanto às dificuldades de acesso aos remédios. O termo pânico faz referência a um sentimento de medo exagerado espalhado por um grande número de pessoas como algo que ameaça o bem-estar da sociedade.

“Isso fica evidente quando há o uso do seu nome científico para diferenciar a ‘maconha do bem’ da ‘maconha do mal’, cannabis é sinônimo de saúde, maconha, de coisa ruim, quando na verdade é a mesma planta.”

Governo diz que ainda está na fase de licitação do produto @Abrace

Para Torquato, o combate a esse preconceito deve ser feito de forma coletiva, levando em consideração a comunicação, sociedade, estudos e políticas públicas. “Não é razoável que as pessoas sejam presas por portar maconha enquanto ela é vendida livremente nas farmácias, prescrita em consultórios de médicos caros. Não é razoável que a diferença entre a cadeia e a liberdade esteja na existência de uma receita médica”, afirma.

O que diz o Estado

Procurada, a SES (Secretaria Estadual da Saúde) afirma que, mesmo fazendo 1 ano desde o anúncio da inclusão do tratamento, até o momento nenhum paciente foi atendido pelo fornecimento gratuito das medicações devido a não conclusão da licitação.

“Até o momento, nenhum paciente foi atendido para fornecimento gratuito de medicação, em São Paulo, por meio do Programa de Dispensação de Canabidiol da SES-SP”, diz a pasta.

‘A licitação para aquisição deste produto está em fase de conclusão e, posteriormente, pacientes munidos de prescrições poderão se inscrever nas farmácias da SES’

Eles afirmam também que todos os profissionais registrados no CRM (Conselho Regional de Medicina) podem receitar medicamentos à base de cannabis e afirma que os remédios ofertados serão apenas os que são aprovados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

“Não há novos medicamentos administrados para as condicionantes clínicas definidas pelo grupo técnico da SES, pois o Programa se aplica a medicamentos já aprovados pela Anvisa. Por fim, cabe ao médico definir se há indicação para o paciente ser tratado com canabidiol”, conclui.

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Livia Alves

Jornalista apaixonada pela cultura brasileira. Pansexual, youtuber e streamer pelo canal LadoPan nas horas vagas. Correspondente do Campo Limpo desde 2021.

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