João Pomelli, 90, reza todas as noites antes de dormir. Católico e ao mesmo tempo seguidor do espiritismo, ele agradece a Deus pelo conforto do lar e pede perdão pelos crimes que cometeu quando era jovem. “Sou grato por ter conseguido comprar minha casinha de forma honesta. Fui preso e paguei pelo que devia, mas ainda não me sinto perdoado pelo Pai”, afirma.
Açougueiro aposentado, João mora sozinho no bairro Chácara Recreio Internacional, periferia de Suzano, na Grande São Paulo, e dedica-se a cuidar do jardim e de uma gata de estimação. Ele relata que aprendeu a valorizar a privacidade e o espaço que tem em casa, pois durante boa parte da vida teve que dividir celas apertadas com vários detentos.
Entre as décadas de 1950 e 1970, João foi preso quatro vezes pelos crimes de receptação, roubo e uma tentativa de homicídio, a qual nega ter cometido. Nesse período ele passou por diversas penitenciárias e presídios da capital paulista, incluindo a extinta Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte de São Paulo.
“A cadeia é o pior lugar que uma pessoa pode estar. Chamo as prisões de ‘O inferno dos vivos’. As celas são apertadas e não têm ventilação, é quente de manhã e frio à noite. São molhadas e fedem muito. Fora as brigas que sempre acabavam em morte”, conta.
Foi durante o tempo que viveu em cárcere que João se descobriu poeta. Para expressar o desejo de liberdade, o arrependimento e a saudade dos entes queridos, passou a escrever poesias em folhas soltas.
Ele conta que já escreveu em torno de mil versos ao longo da vida, mas a poesia que mais gosta é a “Poesia do Tempo” em que o autor compara o próprio envelhecimento com uma árvore que tem as folhas despidas com o vento.
No ‘inferno dos vivos’
João foi preso pela primeira vez aos 23 anos, em julho de 1955. Ele foi detido pelo crime de receptação por comprar uma máquina de escrever roubada e permaneceu 4 dias em cárcere no 14° Distrito Policial, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Após prestar declarações ao delegado, foi liberado.
“Nos tratavam que nem animais lá. Foi horrível perder a liberdade, mas eu era jovem e sem consciência. Logo voltei a fazer coisas erradas”, conta.
Em setembro do mesmo ano, foi detido novamente pelo crime de receptação. Dessa vez teve prisão preventiva decretada e foi levado ao extinto Presídio do Hipódromo, no distrito do Brás, no centro da capital.
Ficou preso por alguns meses, mas após uma tentativa de fuga frustrada dos companheiros de celas, João foi transferido para o extinto Presídio Tiradentes, no Bom Retiro.
Chegando lá, encontrou com um colega que também estava preso, chamado Lauro Rinco. Eles se conheceram na adolescência, período em que João trabalhava no açougue do pai. “Meu velho era alcoólatra e, além de bater na minha mãe, não gostava de trabalhar. Por isso eu fazia boa parte do serviço no açougue”, diz.
Lauro era um dos responsáveis pela cozinha que abastecia a prisão. Sabendo que o detento recém-chegado tinha conhecimento em cortes de carne, ofereceu-lhe o encargo de coordenar o frigorífico da unidade.
João aceitou e, após receber a permissão do diretor da casa, tornou-se açougueiro do presídio. A cada três dias de trabalho, era descontado um dia da pena dele. Em troca do serviço, também ganhava sabonetes, pasta de dente e café. “Na cadeia, as coisas mais básicas são as mais valorizadas”, comenta.
Depois de um ano preso, João recebeu um alvará de soltura e foi liberado. Dessa vez, a mãe dele contratou com muito custo um advogado particular que se encarregou do caso. No entanto, meses depois, voltou a cometer roubos e furtos.
Numa madrugada de setembro de 1956, ele e mais três comparsas invadiram um palacete na Vila Mariana, zona sul, para furtar joias. Mas a moradora da casa acordou e pegou o bando no flagra.
João tentou quebrar a janela com o cabo do revólver para fugir, mas o impacto acabou disparando a arma sem querer. Apesar do tiro não ter acertado em ninguém, posteriormente a vítima o acusou de uma tentativa de homicídio.
“Não a culpo por isso. Eu era um criminoso e não podia tirar coisas dos outros. Mas não atirei nela”, afirma.
A quadrilha conseguiu fugir naquela noite e continuou praticando delitos. Até que um dos integrantes do bando foi pego pela polícia e entregou a localização de todos.
João foi preso pela terceira vez e levado ao extinto Presídio da Alegria, também no Brás, onde permaneceu por dois anos. Atualmente o local funciona como uma Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). Após a Justiça acatar o pedido de habeas corpus feito pelo advogado de defesa, ele foi solto novamente.
Um breve respiro
Mais uma vez livre, João parou de praticar roubos, mas como não compareceu às audiências fixadas pelo juiz e nem justificou as faltas, tornou-se novamente um procurado da Justiça. Com a prisão preventiva decretada, se refugiou no sítio de um conhecido no município de Tapiraí, a 170 km da capital paulista.
Após dois anos morando no local, ele se desentendeu com o dono da propriedade e se mudou para a casa da irmã em Santo André, no ABC Paulista. Durante esse tempo, trabalhou em um ateliê de fotografia do cunhado, onde conheceu Lourdes dos Santos, que já era mãe de três filhos e se tornou sua esposa.
“Foi uma das melhores fases da minha vida. Lourdes era linda, fiel e muito companheira. Ela me fez ver que a vida ainda era bela”, diz.
Morando com Lourdes em uma casa alugada em Santo André, o casal passou por altos e baixos na área financeira, mas João não cogitou voltar ao crime. Nessa fase ele atuou como mordomo, açougueiro e comerciante. A companheira trabalhava como balconista e cuidava dos filhos.
Embora estivesse se mantendo longe das atividades ilegais, um antigo conhecido chamado Ari, ao qual João devia um favor, pediu para que ele vendesse algumas joias roubadas.
Mesmo não gostando da ideia, ele aceitou pagar a dívida, mas foi pego em flagrante. O dono da joalheria desconfiou e chamou a polícia enquanto negociavam o valor dos produtos.
Casa de Detenção do Carandiru
Após 10 anos, João retornou à prisão, sendo levado à Casa de Detenção do Carandiru. “Experimentei a liberdade e encontrei meu amor. De uma hora para outra, perdi tudo outra vez. Isso me quebrou”, relata.
Veterano do sistema carcerário, ele conhecia bem como funcionava as prisões. Evitava as brigas e trabalhava como faxineiro do pátio para reduzir a pena de cinco anos. Posteriormente também trabalhou como açougueiro no local.
Do lado de fora, Lourdes enfrentava dificuldades financeiras e esperava pelo companheiro. Vendeu os bens que tinha para pagar o advogado enquanto trabalhava em uma banca de jornal.
Nesse tempo, João escreveu uma poesia para Lourdes chamada “Sublime Alegria”, em que expressava a saudade e respeito pela amada.
Ele permaneceu preso por 4 anos e foi libertado no dia 2 de novembro de 1967. “Lembro do primeiro banho quente que tomei na casa de Lourdes. Chorei muito”, afirma.
Recomeço
Sem dever nada para a Justiça dessa vez, João, Lourdes e as crianças foram morar novamente na casa da irmã. Ele trabalhou como açougueiro em um mercado de Santo André e depois comprou o próprio açougue, mas foi em Suzano que a família decidiu viver.
“Eu e um amigo estávamos procurando uma chácara para alugar e viemos parar em Suzano. Foi quando achei uma casinha bem barata e resolvi comprar”, conta.
Assim que se mudou para o atual endereço, João comprou um açougue na Vila Ipelândia, bairro vizinho. Por conta das dívidas do ex-dono com o fornecedor de carnes, João pagou um valor mais barato e assumiu as despesas do negócio.
Trabalhou até os 75 anos no estabelecimento e, após se aposentar, deu o comércio para o único funcionário. Lourdes faleceu em 2009 em decorrência de um câncer e os filhos se mudaram para Santo André logo que atingiram a maioridade.
João registrou toda a sua vivência em sete livros de poesias que nunca foram publicados e uma autobiografia intitulada “Presídio da Alegria: Sucursal do Inferno”, lançada de forma independente em 2005.
Apesar de não escrever em decorrência da visão limitada, o autor se considera um poeta. “Vejo a beleza na simplicidade, na natureza e até no sofrimento. Serei sempre um poeta do cotidiano”, finaliza João Pomelli.