“Por que que a literatura tem que ser dura?”, questiona Naloana Lima, 37. Para a atriz, não é que a palavra não tenha significado, mas o corpo pode caminhar junto. Ela é uma das integrantes do Grupo Clariô de Teatro, que abriu as portas de seu espaço em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, para o evento de lançamento da Felizs (Feira Literária da Zona Sul), na noite da segunda-feira (9).
Com o tema “Meu corpo, minha marca no mundo”, a programação se estende até o dia 21, em escolas e bibliotecas públicas, espaços culturais, Sesc, Praça do Campo Limpo, entre outros lugares. A feira convida o público a refletir sobre a relação entre a literatura, o corpo humano e o teatro. Para Naloana, há questões que estão se abrindo.
“Sendo [eu] do teatro, o corpo vem na frente. Acho que tudo se revela através do corpo. Talvez a literatura esteja um pouco massificada e a gente precisa ver a pele”, reflete.
A Felizs começou há cinco anos. A iniciativa tem promovido oficinas, rodas de conversas, apresentações de teatro, dança e música, exibições de filmes e saraus — sobretudo com produtores, autores e artistas emergentes das periferias.
A professora aposentada Gilmarie Oliveira, 58, acompanha atividades literárias e artísticas realizadas na região há 15 anos, e diz que essa reflexão será um aprendizado em um momento de questionamento de padrões.
“O [tema do] corpo veio a calhar com o que as pessoas estão fazendo e mostrando. As propagandas estão colocando pessoas que não são aquelas usuais de propaganda, a modelo super magra”, conta.
Justamente o reconhecimento da diversidade de corpos foi um dos motivos da escolha do tema. “Os corpos não são iguais. Compreender isso é fundamental pra gente conseguir dialogar e entender que a gente precisa se reconhecer para além desse mundo virtual também”, explica Silvia Tavares, 48, uma das organizadoras da Felizs.
Naloana também faz essa consideração: “Eu fico pensando no corpo negro. Na questão da sua presença: ela já significa. Então, você se colocar como uma pessoa negra é um ato político. Tem a negritude, mas também há a questão da homossexualidade, da mulher se colocar. E tudo se revela através do corpo”.
A temática da feira rendeu inspiração para o poema Crônicordel, de Augusto Cerqueira, 42. Livreiro e morador de Piraporinha, na zona sul de São Paulo, ele participa de saraus há 15 anos. O autor afirma ser marcado pela cena da poesia que tem na zona sul.
“Pela irmandade, coletividade, encontros e amizade. Isso é o que é mais profundo mesmo. As outras marcas vêm, a gente cicatriza, a gente aprende a lidar com elas ou evitá-las”, acredita.
“cada qual com sua história
cada um com uma verdade
cada um com um problema
e uma necessidade
correndo contra o relógio
em busca da felicidadeentão decidi apurar
a minha observação
e ao me analisar
de novo, surgiu a questão:
qual meu lugar no mundo?
passo pela história em vão?”(trecho do poema “Crônicordel”, de Augusto Cerqueira)
PROGRAMAÇÃO
Na noite de quinta-feira (12), houve uma conversa sobre o teatro periférico e os desafios de produção e reconhecimento, no encontro “Dramaturgias insurgentes: autor@s, vozes e presenças”. Neste sábado (14), às 20h, no Espaço Brava Companhia, haverá uma conversa literária sobre “A cena do teatro periférico: território singulares, dilemas comuns?”, com representantes de grupos de teatro de várias partes da Grande São Paulo.
Também haverá conversas sobre a ditadura militar; as violações que as pessoas LGBTQIA sofrem; literatura feita por mulheres negras; oficina de expressão corporal; e apresentações de teatro.
LINGUAGEM DE SINAIS
Quem também depende do corpo para se comunicar são os surdos e, pela primeira vez, algumas atividades da Felizs têm tradução em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Yure Soares, 23, é morador do Campo Limpo e um dos intérpretes da linguagem de sinais. “Usamos o corpo para nos comunicar, sentir prazer, fazer as outras pessoas nos entender. Com os surdos tudo isso acaba ficando mais intenso”, afirma.
Yure só conhecia o Sarau do Binho, movimento de literatura de onde se originou a feira, de ouvir falar. “Nos sentimos em casa. Ficamos emocionados e queremos fazer que as pessoas que não saibam língua de sinais nos entendam somente com a leitura dos nossos corpos em movimentos”, explica.
A programação completa da V Felizs – Feira Literária da Zona Sul está disponível no site: https://www.felizs.com.br/
Colaborou Jessica Bernardo, de Grajaú