A pernambucana Vilma Medeiros, 50, chegou ao Jardim Pantanal, favela de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, em 1993. Ela cresceu na cidade histórica de Jaboatão dos Guararapes (PE), tombada pelo patrimônio público, e se chocou ao ver a situação desoladora do bairro que se formava na periferia paulistana.
“Quando cheguei, eram casebres de madeira. Os moradores todos amontoados um em cima do outro, em ruas com lama e esgoto a céu aberto, sem água, sem luz e sem árvores”, diz.
Vilma participou das discussões sobre a urbanização da região, entre 2002 e 2007. Hoje, ela teme o fim da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano), empresa pública que deu início a esse projeto e atua com políticas públicas no local.
Criada em 1949 para promover o financiamento de moradias populares, a CDHU é uma das dez autarquias e empresas públicas que podem ser extintas, conforme o PL (Projeto de Lei) nº 529 de autoria do governador João Doria (PSDB). O texto foi aprovado nesta quarta-feira (14), mas ainda pode sofrer alterações.
O fim tem trazido receio aos projetos que ainda estão em andamento. O projeto Pantanal urbanizou os bairros de União de Vila Nova, Vila Jacuí e Vila Nair, em São Miguel Paulista.
Além do Pantanal, a CDHU urbanizou outras duas favelas na região metropolitana de São Paulo: o Jardim Santo André, no município de Santo André, e o bairro dos Pimentas, em Guarulhos.
Usando a pandemia do novo coronavírus como pano de fundo, o PL 529 surge com o argumento de que é preciso equilibrar as finanças do Estado e construir uma “gestão pública moderna e eficiente”.
RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL
Em decisão conjunta com a comunidade, as ruas do Jardim Pantanal, antes enlameadas, foram asfaltadas, sistemas de drenagem para conter enchentes foram implantados, creche e escola foram construídas, além das tradicionais moradias populares erguidas para alojar quem antes vivia em barracos.
A pedido dos moradores, que queriam “um lugarzinho para plantar”, a CDHU também construiu um viveiro onde mais tarde foram instaladas hortas comunitárias.
Aldineia Pereira, 40, chegou à região há seis anos, depois do processo de urbanização. Ela fez parte do grupo de trabalho da horta comunitária e conta como essa foi uma possibilidade de poder ficar mais tempo com a filha Maria Eduarda.
“Tinha decidido que não iria mais para o mercado de trabalho, porque queria acompanhar o desenvolvimento da minha filha. Foi uma porta de escape porque consegui ter uma fonte de renda sem precisar deixar a minha filha com outras pessoas”, relata.
O receio dos moradores é de que projetos desenvolvidos ao longo dos últimos anos sejam deixados de lado.
Um exemplo é o GAU (Grupo de Agricultores Urbanos), que no início recebia uma bolsa da prefeitura para fazer a zeladoria das praças e plantar árvores no bairro.
Com o intuito de gerar independência financeira das moradoras por meio da venda de alimentos orgânicos, uma bióloga da CDHU propôs a criação do coletivo Mulheres do GAU, do qual Vilma e Aldineia fazem parte.
A estatal também deslocou biólogos e agrônomos para ensinarem os moradores a manejar o solo e a plantar alimentos orgânicos. A partir dessa interação nasceu o Viveiro-Escola.
“Tudo isso agrega um valor muito grande para que a gente tenha mais cuidado com a natureza, preserve mais o meio ambiente”, diz Aldineia.
Atualmente, a região conta com três polos de geração de emprego e renda, como cooperativas de reciclagem e costura e o viveiro.
“Estamos todas nervosas com a possibilidade do fim da CDHU, porque são eles que pagam a luz do viveiro. O que será de nós? Será um gasto a mais nesse momento de pandemia”, relata a moradora Vilma. “O CDHU pensa em tudo isso. Não é só chegar, fazer a casa, dar a chave, o carnê e ir embora. Ele fica ali junto da comunidade.”
Já Aldineia lembra que outras unidades ainda não completaram seu processo de urbanização. “Vai retroceder e as comunidades vão perder muito. As pessoas mais vulneráveis principalmente vão perder muito”.
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EXTINÇÃO
O projeto de lei de Doria prevê que as funções desenvolvidas pela CDHU serão encaminhadas para a iniciativa privada e para a Agência Paulista de Habitação Social (Casa Paulista), cuja função é focada nas criações de PPPs (Parcerias Público-Privada).
Especialistas em habitação criticam o modelo. Apontam que a CDHU não é perfeita, mas que deveria haver o esforço para aperfeiçoar, e não extinguir a companhia.
A cientista social Mariana Costa Silveira descreve que a política de urbanização de favelas só foi implementada a partir da década de 1980 com a mobilização de movimentos sociais que reivindicavam o direito à cidade.
Ela afirma que, por ser uma autarquia estadual, há a possibilidade de se fazer uma coordenação entre municípios e um planejamento territorial mais integrado, mas com um enfraquecimento da estatal nos últimos anos desde a criação da Agência Paulista, isso ficou em segundo plano.
“É a implementação de uma agenda”, comenta a arquiteta e urbanista Luciana de Oliveira Royer. “Quem pensa nessa agenda acredita realmente que a intervenção do Estado nesses mercados arrasa com a capacidade de competição. Eles têm uma crença nítida de que retirando tudo isso, você vai enxugar o Estado e conseguir fazer com que todo o sistema trabalhe com mais eficiência”, acrescenta.
Ela também questiona a ideia de que o motivo é a economia. “A população que se beneficia das suas políticas têm que pagar para ter os apartamentos ou para regularizar os seus lotes”.
No ano passado, a companhia apresentou um lucro líquido de R$ 283 milhões, de acordo com o balanço patrimonial.
A militante do movimento de moradia Evaniza Rodrigues analisa que o enfraquecimento da CDHU em benefício das PPPs (Parcerias Público Privadas) atende somente aos interesses do mercado. Ela e outros moradores afirmam que a iniciativa privada não dará continuidade ao trabalho de caráter social desenvolvido pela estatal.
“Deve sobrar somente as áreas que o mercado não quer, gerando um aumento do número de favelas e ocupações, das áreas de risco e ambientalmente frágeis”, diz Evaniza.
Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, o estado de São Paulo registra um déficit habitacional de cerca de 1,8 milhão de domicílios, e estima-se que existam 391 mil moradias em locais precários, como favelas e cortiços.
Em nota enviada à Agência Mural pela Secretaria de Comunicação do Estado de São Paulo, o governo defende a extinção da estatal alegando que o programa Casa Paulista é mais eficiente e dará continuidade às atividades ligadas à moradia popular, sem mencionar a urbanização de favelas.
Segundo o governo, “é mais produtivo para a sociedade financiar casas diretamente com o mutuário, com crédito subsidiado, do que manter toda a estrutura de uma empresa como a CDHU para elaborar projetos, construir e administrar a cobrança das residências”. As atividades da empresa não geram prejuízo aos cofres do Estado.
O argumento segue com o apontamento de que, em 2019, a CDHU gastou R$ 897 milhões para manter a estrutura administrativa e que, segundo eles, o Programa Casa Paulista entregou 7,4 mil casas no mesmo período sem custo adicional com equipe e administração.
O PL 529 tramita em regime de urgência na Assembleia Legislativa. O governador João Doria (PSDB), autor do texto, tentou acelerar a votação nas últimas semanas.
Mas pela segunda semana consecutiva a ala de oposição ao projeto, que reúne partidos de esquerda e de direita, está conseguindo barrar o andamento da proposta.
No entanto, o texto-base do projeto foi aprovado em sessão extraordinária na madrugada de hoje (14) por 48 votos a favor e 37 contra.
Os deputados ainda precisam votar os destaques para que a votação seja concluída e encaminhada para sanção do governador. Algumas empresas foram retiradas, mas a CDHU segue no pacote. Ainda não há data para a próxima sessão.