A bola está em campo na Copa do Mundo de Futebol Feminino e, entre gols, dribles e jogadas históricas, o torneio fortalece o sonho de jovens garotas que desejam jogar profissionalmente. Enquanto do outro lado do planeta, na Austrália, a torcida vibra com a jogadora Marta, participando de sua sexta e última Copa, nas periferias do Brasil meninas se inspiram na história da craque para construir uma carreira no esporte.
“Vi a Marta jogando e me interessei, porque ela teve uma oportunidade sendo mulher e eu vi que poderia ter também”, comenta a estudante Barbara Luiz Ribeiro, de 14 anos, da Vila Missionária, zona sul de São Paulo.
“A Marta é um símbolo de esperança. Ela acreditou até o final. Mesmo quando não podia jogar futebol feminino, ela não desistiu do sonho dela”, complementa a também estudante Jully Severiano Ferraz, 13 anos, do Jardim Ione, em Ferraz de Vasconcelos.
E não é só a artilheira, considerada a melhor do mundo por seis vezes, que faz os olhos das meninas brilharem. Formiga, Cristiane e a goleira Bárbara também estão entre as ídolas em campo, mas, para além da admiração, as meninas do futebol têm um sonho em comum: jogar no Corinthians, time favorito, e quem sabe, participar de uma Copa do Mundo.
Direito ao esporte
Antes do sonho se tornar realidade, Jully e Barbara lembram que começaram a bater bola pelas ruas do bairro, por volta dos 6 anos, como uma despretensiosa brincadeira de criança. “Eu tinha uma bola de leite da Frozen. Depois, nos meus aniversários, meu pai começou a me dar bola ao invés de bonecas e eu gostei”, conta Jully.
Incentivadas pelos pais, as duas jovens atletas tentaram se inscrever em escolinhas de bairro. Barbara conquistou uma vaga no Centro Municipal de Desportivo (CMD) da Vila Missionária, na zona sul da capital paulista. Trata-se de espaço gratuito da prefeitura, onde treina há cerca de três meses como lateral direita, em um time misto, com meninos e meninas.
“Eu gosto porque a posição dá uma grande visibilidade do jogo e bastante presença. Você pode dar passe e prestar ajuda quando precisar. Na zaga, não é assim”, diz a atleta. “Só tem eu e mais uma menina. Alguns ficam surpresos, me olhando e pensando: ‘será que ela joga bem?` Quando eu mostro que sim essas pessoas ficam impressionadas”, explica, lembrando que se sente bastante acolhida pelo time, mas que se sentiria mais à vontade jogando só com meninas
O próximo passo para realizar seu sonho é jogar no Centro Olímpico Desportivo, próximo ao Parque Ibirapuera. Ela, porém, perdeu o prazo das seletivas neste ano.
Quem já conquistou a vaga é Jully, que treina desde 2020 como goleira de futebol de campo no Centro Olímpico, após ser uma das cinco selecionadas em uma peneira com 200 candidatas.
“Fiquei muito feliz, eu vi que meu sonho podia ir mais para frente”. Ela diz que escolheu o gol por ser mais emocionante. “Jogar na linha, para mim, não era tão divertido”.
Jogando em um time totalmente feminino, Jully compete ao menos uma vez por mês em campeonatos, já ganhou diversas medalhas em grupo e viajou para Rio de Janeiro e Florianópolis para participar de torneios.
Ela também já teve a experiência de jogar em time misto. “É a mesma coisa, não vejo problema, mas acho que é mais legal jogar com meninas, parece que a gente é mais amiga dentro de campo, a gente joga mais à vontade”.
Minas na Várzea
A maior concentração de times femininos de várzea de São Paulo está na zona sul da cidade, que reúne 22 equipes. Na sequência está a zona leste, com 15 e a zona norte, com 11.
Em contrapartida, a região com menos times de várzea da capital (apenas um) é a zona central. A zona oeste também fica na retaguarda, com dois times.
Entraves
Tanto Barbara quanto Jully dividem a rotina de estudos no ensino médio com os treinos de futebol. A goleira frequenta o Centro Olímpico três dias por semana das 14:30 às 17:30. Para chegar a tempo, sai apressada da escola e atravessa a cidade, em um trajeto de duas horas no transporte público. “Chego em casa depois das 19:00, é bem cansativo”. O tempo que sobra fica para as lições de casa”, garantindo que é boa aluna.
Barbara também se dedica aos estudos, pois além de atleta quer entrar na universidade. Os treinos são de terça e quinta, com duração de uma hora de futebol. Nos outros dias ela é a responsável por buscar a sobrinha na escola.
Como o local dos treinos é próximo de casa, ela pode ir a pé – um gasto a menos para a família, segundo a mãe que trabalha como copeira e que sustenta a casa com um salário mínimo e meio. “A chuteira ela ganhou de presente, mas preciso comprar uniforme e outras coisas”, diz a mãe, Nadir da Conceição Luiz, 54 anos.
Somam-se aos gastos a compra de equipamentos como roupas térmicas, uniformes, chuteiras, cotoveleiras e luvas, além das taxas de aluguel dos ônibus para que a atleta participe de amistosos. Com verba curta, Barbara teve que encarar sozinha as viagens para os torneios fora da cidade, já que o Centro Olímpico só poderia custear a sua ida e não a de um responsável.
Mãe e filha lamentam por perder momentos como esse. “Eu fiquei um pouco triste, porque a maioria dos pais das meninas estavam lá junto com elas, pois tinham melhores condições. Eu não tinha ninguém”, desabafa.
“Deixo de comprar roupa e sapato para mim e para o meu marido para comprar o que ela precisa. Quando rasga a gente costura. Ontem mesmo ela estava correndo e tirou a chuteira porque estava fazendo bolha [nos pés]”, explica a mãe, Deuselina Severiano Janoca, 52.
Os pais correm atrás de patrocínio, mas até agora não conseguiram parcerias. Para Jully, as jovens de periferias precisam batalhar mais para chegar ao esporte profissional, pois as chances não são iguais. “Normalmente as meninas de lá [Centro Olímpico] tem preparador físico e personal e a maioria tem mais condições de treinar e conseguem comprar os próprios materiais”, complementa.
Na esperança de dias melhores, Barbara e Jully correm atrás do sonho não apenas para si, mas para suas famílias. “Vejo que o futebol pode me dar um futuro bom. É um sonho meu e eu posso ajudar minha mãe no que ela precisar”, diz Barbara.
Chutando alto
Com apenas duas horas de futebol na semana, Barbara busca complementar o treino com partidas em quadras da região, além de participar de times de várzea. “Pode ser uma oportunidade para aprimorar mais meu jogo e aprender mais sobre futebol feminino”.
Ela acredita que na várzea existem muitos olheiros que podem gostar do seu jogo, mas é nas peneiras de clubes que ela enxerga as principais oportunidades.
Barbara se inscreveu para uma seleção de atletas no clube do São Paulo, que ocorreu no dia 18 de julho, mas não pôde ir. “Me avisaram do local muito em cima da hora e eu não consegui me organizar com a condução”.
A garota já está inscrita em outra peneira, do Corinthians, que ocorrerá em agosto. “Se eu passar, entro no treinamento para jogar no profissional”.
Já Jully prefere esperar um pouco mais para prestar as peneiras. Enquanto isso, ela divide o tempo jogando também em um time defutsal em Santo André. Como já treina outros dias no Centro Olímpico, foi dispensada pelo técnico e vai apenas nos torneios.
A garota aceitou o desafio, mas não pretende trocar o futebol de campo pelo de salão. “Geralmente as pessoas têm mais sucesso [no campo], então acho que eu teria mais oportunidades, poderia receber mais e até jogar uma Copa do Mundo pelo Brasil”, sonha Jully.