Em meados de 2011, Minervina Alves, 57, perdeu a mãe por conta de um câncer. Anteriormente, o marido de sua amiga, também moradora da região de Campo Limpo, foi vítima ao reagir de uma tentativa de assalto. Esses acontecimentos fizeram com que elas se encontrassem para uma escuta e apoio no período de luto.
Foi nesse contexto que surgiu o grupo Emergir, no Parque Regina, bairro do distrito do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, que há mais de 10 anos têm buscado formas de dar apoio às perdas de moradoras da região.
O nome “Emergir” fala sobre sair do “afogamento mental”, um apoio em um momento de sufoco. Minervina, que hoje é aposentada, conta que o suporte do grupo foi importante para que conseguisse lidar não só com o falecimento da mãe, mas também a respeito do divórcio que ocorreu no mesmo ano.
“Quando minha mãe descobriu que estava com câncer, todos nós [os irmãos] entramos em depressão. Foi aquela correria com médico, remédios que a gente não tinha dinheiro para comprar. Na época arrumei um emprego para ajudar, porém, ela [a mãe] veio a desencarnar”, conta.
Após o começo das conversas, as integrantes notaram que o luto era presente de diversas formas e algo que precisava de cuidados. Com isso, decidiram se encontrar mensalmente na última sexta-feira do mês na sede da Sociedade Amigos do Parque Regina.
Os encontros são iniciados com uma conversa onde é anunciado um tema pré definido voltado para questões relacionadas ao luto. No decorrer do bate-papo o assunto se molda de acordo com a necessidade de fala das participantes. Ao final, os presentes se reúnem para comer e conversar sobre diferentes tópicos.
Com o tempo o grupo acabou se tornando um ponto de acolhimento e atualmente conta com 5 integrantes permanentes.
Vera Lucia, 64, é presidente da Sociedade Amigos do Parque Regina e conta que o ambiente sempre foi usado para dar apoio à comunidade. Além do Emergir, o espaço atende um grupo de NA (Narcóticos Anônimos), aulas de karatê e aceita projetos que sejam voltados para os moradores.
A presidente relata que inicialmente participava do grupo como forma de dar apoio ao projeto, porém, durante a pandemia de Covid-19 também precisou de ajuda. “Eu passei por dois lutos seguidos, do meu filho, há um ano, e do meu pai, há nove meses. Se não fosse o Emergir eu estaria em casa chorando”, lamenta. “Fora os cachorros que partiram. As pessoas falam ‘cachorro não é luto’, mas é sim”, completa.
Quando se fala em luto, o grupo pensa sempre no contexto de perda. O foco é apoiar os membros quando se trata do sofrimento, seja pelo falecimento ou pelo término de uma relação familiar, amorosa como um divórcio e até financeira.
Vera lembra um caso que a marcou muito, de uma senhora que, nas primeiras sessões, não falava. “Uma senhorinha vinha aqui e só ficava chorando no canto e a gente deixava chorar. Com o tempo perguntamos se foi alguém da família (que veio a falecer) e ela falou ‘meu gatinho morreu’. Nós demos um apoio, era uma senhorinha sozinha que sentiu falta da companhia do gatinho”.
Dentro de outros contextos de perda, Minervina fala sobre visitas pontuais que se tornam presentes nas épocas de chuva na região.
“As pessoas que participam do grupo são pobres. Aqui no bairro tem enchente, tem gente que perde a casa inteira e o Estado não olha isso. Isso também gera um sentimento de luto”
Minervina Alves, integrante do grupo “Emergir”
Durante a pandemia, as sessões sofreram alterações: saíram da sala que geralmente faziam os encontros para um espaço maior. Vera comenta que fizeram o possível para manter o distanciamento seguro entre as participantes. “Como vinham poucas pessoas, o distanciamento deu para fazer.”
Acolhimento comunitário além da medicalização
Doutora e mestre em psicologia social pela PUC-SP, Camila Aleixo de Campos Avarca é especialista em gestão de serviços de saúde pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e comenta sobre a importância desse tipo de acolhimento e a importância do Emergir conversar sobre diversas formas de luto.
“Em grandes capitais, principalmente depois da pandemia, as pessoas foram ficando mais isoladas, solitárias, e o resgate de encontros comunitários para falar de sofrimento e pensar sobre outras coisas que não são das dimensões da rotina doméstica é de uma importância fundamental. É um resgate da própria noção de comunidade que a gente tem perdido nesses tempos”, conta.
A especialista se mostrou admirada com a longevidade do grupo, que já soma 10 anos de atuação no bairro: “acho que isso já fala por si sobre a importância desses tipos de grupo na comunidade. Esse trabalho tem que ser incentivado, para que possam existir muito mais grupos como esses”.
Avarca fala sobre o que os profissionais da psicologia chamam de “fenômeno de medicalização da vida”, que é receitar medicamentos e tornar doenças fenômenos da vida que muitas vezes requerem um ambiente mais voltado ao apoio, escuta e vínculos.
Minervina Alves Vera Lucia em frente à Sociedade Amigos do Parque Regina, local que acontece os encontros @Livia Alves / Agência Mural
A profissional conta que quando trabalhou em uma Unidade Básica de Saúde realizou uma revisão de prontuários e notou certas coincidências que deveriam ser levadas em consideração para incentivar esse tipo de acolhimento.
“A maioria dos prontuários eram de mulheres adultas e a maioria medicalizadas com casos leves de saúde mental. Em alguns casos é necessário introduzir a medicação sim, mas na maioria dos casos, se pudesse contar com esse tipo de rede de apoio, talvez não tivesse entrado na medicação”.
A escuta, a compreensão e a comparação de histórias no Emergir são usadas como forma de apoio mútuo e não tem função de substituir o trabalho de uma profissional de saúde mental. Para Avarca, o trabalho proposto por elas realmente não necessita da inclusão da presença de um psicólogo.
“Esse grupo tem a função de um suporte, de construção de vínculo e fortalecimento das relações comunitárias. Acho, inclusive, que a inserção de um profissional da saúde quebraria toda a dinâmica que se construiu ao longo desse grupo que tem por objetivo a convivência”.
“Caso seja necessário algumas dessas mulheres buscarem uma rede mais intensiva de cuidado no campo da saúde mental, aí sim recomendo procurar por profissionais de saúde, além de continuar participando desses grupos.”
Desde o início, as participantes deixam claro que não são psicólogas e que o Emergir tem como objetivo o acolhimento afetivo.
Apesar de ser um grupo majoritariamente feminino, as participantes citam que o espaço é aberto para todas as pessoas independente do gênero, idade ou qualquer outra característica física e social.
“Às vezes a pessoa só quer chegar aqui e sentar, falar. Isso é a energia que temos aqui, que passamos uma para a outra. É o que ajuda a pessoa às vezes a dar aquela respirada ou não entrar em depressão”, completa Vera Lúcia, Presidente da Associação Amigos do Parque Regina.