Com a reeleição de Ricardo Nunes (MDB) e com uma maioria conservadora na Câmara Municipal de São Paulo, vereadores mais progressistas devem enfrentar desafios para alavancar suas pautas, em especial as voltadas para a população periférica. É que projeta a vereadora Keit Lima (PSOL), 33, a poucos dias de sua primeira sessão plenária na Casa, marcada para a próxima segunda-feira (4). Ela é uma das três mulheres negras periféricas eleitas na capital paulista em 2024.
Nascida na favela João de Barro, em Recife (PE), a jovem mudou-se aos 8 anos para a Favela do Macedo, na Brasilândia, zona norte de São Paulo. A militância começou aos 13, em um projeto social, onde Keit ajudou na alfabetização de alunos da primeira à quarta série. Alí conheceu e se envolveu com o movimento negro, feminista e com organizações que defendem o direito a educação.
Nestes espaços, vislumbrou a porta de entrada para a política institucional e, em 2020, concorreu à eleição para deputada estadual em São Paulo também pelo PSOL, mas não foi eleita.
“Minha candidatura nasce de um grito de revolta das pessoas pobres e negras cansadas de ver, de dois em dois anos, candidatos nas periferias e favelas, pedindo votos. Depois, sequer sentam para nos ouvir ou construir juntos”.
Keit tem como prioridade garantir orçamento municipal para as favelas e periferias, além de lutar por educação de qualidade como um direito de todos. Ela acredita que lugar de favelado também é na universidade, fazendo ciência – um caminho que ela mesma trilhou, se preparando para a vida pública com cinco formações: graduação em Administração e em Direito com especialidade em gestão pública, ciência política e urbanismo social. Em todas, contou com políticas afirmativas, das quais é defensora.
Em entrevista exclusiva à Agência Mural, a jovem falou sobre a importância de uma vereadora favelada estar no legislativo municipal de São Paulo e como pretende aproximar os jovens do parlamento nos próximos quatro anos.
Agência Mural: Quais foram os desafios da sua campanha e o que contribuiu para sua eleição?
Keit Lima: Uma mulher negra, de favela, disputar e ganhar é muito difícil, porque [historicamente] a gente tem menos verba para ir para a rua e para impulsionar nossos conteúdos nas redes sociais. Se as pessoas não te conhecem, não vão votar em você. Eu estive todos os dias na rua, porque a política se faz muito distante dos pobres. Eu percorri a cidade, porque colocar a favela no orçamento não é responsabilidade apenas da favela. Construir uma cidade feminista é papel também dos homens, construir uma cidade anti-racista é reponsabilidade dos brancos. Muita gente abriu as portas pra mim.
E, apesar dos desafios, uma coisa muito linda da minha campanha foi que eu sempre a construí coletivamente a partir do movimento social. Minha vitória também é coletiva e meu mandato também será, pois se a gente ganhou, foi por causa de muitas mãos, corações e mentes que investiram dinheiro e energia.
Mural: Como você enxerga sua vitória?
Keit: Um dia estava panfletando e encontrei a dona Maria, uma senhora negra. Ela perguntou: ‘quem é o candidato?’ Eu falei: ‘eu!’ E ela disse: ‘nem sabia que a gente poderia ser candidata’. Eu contei minha história, ela chorou e a gente se emocionou juntas. O parlamento tem que ser um retrato do que é [a população da] cidade de São Paulo, não dá para não ter pobres disputando. Quando a gente fala de representatividade é entender que a política também é nossa. Não é uma pessoa favelada que vai estar lá, é a favela toda! Qualquer pessoa favelada que quiser falar, terá um mandato para representá-la.
Mural: Quais estratégias para emplacar as pautas progressistas, sobretudo para as minorias, pensando na composição da Câmara na próxima legislatura?
Keit: Nós elegemos a Câmara mais conservadora da história da cidade de São Paulo. As pautas do vereador mais bem votado [Lucas Pavanato, do PL] são contra o movimento negro e propõem expulsar mulheres trans de banheiros femininos.
Eu lembro de uma frase de Marighella que ele fala assim: ‘a gente não tem tempo para ter medo” e outra que gosto bastante “ou corre com a gente, ou corre da gente’. Então, que bom que nós, minorias progressista, estaremos lá fazendo essa disputa de projeto de vida e de políticas públicas em primeira pessoa. Para isso, teremos que fazer um mandato junto com os movimentos sociais, a classe trabalhadora e a favela.
Mural: Como deve ser legislar na segunda gestão de Ricardo Nunes?
Keit: Independente do candidato eleito, haveria desafios para a esquerda legislar. Com a reeleição de Nunes, nossos grandes desafios serão lutar contra retrocessos, para que o projeto de morte não avance para as favelas, em prol das mulheres, pessoas negras e pobres. Vai ser muito diálogo e negociação.
Mural: Quais as principais pautas para as favelas no seu mandato?
Keit: Meu grande objetivo e legado será colocar a favela no orçamento. Parece ser uma coisa ampla, mas é algo concreto: fazer a disputa para não faltar medicamento no posto e garantir moradia digna, transporte, educação de qualidade e cultura. Pensar na emergência climática, que não afeta do mesmo jeito as pessoas. São as pessoas pobres, trabalhadoras, periféricas, faveladas, que acordam às 4 horas da manhã, que sustentam essa cidade.
Mural: E para a juventude periférica, que é pouco representada no parlamento?
Keit: São pilares [da nossa gestão] a educação, que sempre foi a minha principal militância, e a luta para que 3% do orçamento [municipal] vá para a cultura, sendo metade disso para cultura periférica, onde não chega dinheiro. Educação e cultura mudam as perspectivas e a vida de pessoas periféricas e faveladas. Mudou a minha.
O terceiro lugar de trincheira [do nosso mandato] é garantir oportunidades [de trabalho e renda], com um centro de atendimento pensado para o primeiro emprego e para a formação profissional. É dar acesso para que a nossa juventude possa viver e pensar em outras possibilidades. Eu acredito em uma juventude periférica favelada com diploma na mão e para que isso aconteça a oportunidade precisa chegar até a favela.
Mural: Como atrair jovens periféricos, favelados, negros e LGBTQIAPN+ para a política institucional?
KL: Eu acho que a gente avançou pouquíssimo em representatividade, com uma bancada de extrema direita, com avanço do bolsonarismo. Esse é um grande problema para a área progressista, sobretudo para a juventude. A política institucional expulsa essa juventude, tem muito mandato excludente que só quer reeleger as mesmas pessoas.
Uma das coisas que mudou a minha vida foi estar nos movimentos sociais e na política institucional desde cedo. Por isso, uma das responsabilidades do nosso mandato será a participação social [de crianças e jovens], abrindo diálogos e possibilidades, desde o chamado para fazer visita [ao parlamento] até se colocando à disposição para construção política. Quando a gente debate política institucional desde cedo, isso muda nossa trajetória, muda a política do país, é revolucionário. A partir de fevereiro a gente vai fazer essa divulgação e convidar a galera.