Tudo começou devido a uma desilusão amorosa. Luís Carlos, 50, tinha 17 anos quando parou no consultório de um psicólogo no começo dos anos 1990. “Tive um problema emocional e a empresa pagou um psicólogo para mim. Coisa de moleque, sabe? Primeiro amor, e a menina terminou comigo”.
Enquanto contava o que estava sentindo, algo naquele cenário chamou a atenção. Um livro com uma capa bastante chamativa. “Era o ‘Zona Morta’ do Stephen King”, relembra. O psicólogo ao perceber a curiosidade do jovem lhe fez uma proposta: “Pode pegar que é seu, lê ele depois me conta a história”.
“Me senti na obrigação de ler, e aí meu amigo foi a melhor experiência da minha vida, que me deixou mais feliz de ter tido aquele problema foi eu ter achado a leitura”, conta sorrindo o agora livreiro Luís, mais de 30 anos depois, dentro da Garagem Books, a livraria que mantém no Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo.
Ele é um dos poucos livreiros de bairro que seguem apostando no serviço mesmo com as dificuldades. Atualmente a rotina dele se divide entre duas atividades. Ele abre a livraria bem cedo. Por volta do meio-dia, fecha o espaço, pega o carro e busca o filho de 11 anos na escola. Após deixá-lo em casa, parte para a segunda jornada de trabalho: como motorista de aplicativo.
“Gosto demais de dirigir, lidar com o público, conversar é comigo mesmo”, conta ele enquanto tomava um café.
Além de bom para conversas, ele é um leitor voraz, principalmente de livros de história e biografias, e tem sempre obras à mão no carro. Até hoje guarda com carinho o mesmo exemplar do livro de suspense e terror, e é fã de Stephen King, um dos poucos autores de ficção que lê.
A livraria recebeu o nome de Garagem Books por ser literalmente a garagem da casa dele. “Calculei direitinho: cabe o carro, cabem os livros, está então pronto, foi essa ideia que tive”, explica. “Mas aqui eu me divirto muito, é um espaço aberto, a pessoa pode vir comprar, eu mostro tudo, é minha paixão”.
O livreiro montou o espaço com a ajuda de um amigo grafiteiro, que fez as artes que enfeitam as paredes da garagem. E as estantes e todos os livros são parte do acervo conquistado desde quando ele era livreiro no Shopping Interlagos. Devido ao baixo número de vendas em 2017, começou fazer as viagens.
Luís desabafa que em quatro anos como motorista por aplicativo, só lembra de três livrarias em bairros periféricos por onde passou. “Tem um apelo muito baixo [a leitura], e a periferia precisa disso”, defende. “A periferia tinha que se interessar mais por livros, pela leitura, para não ser enganada”.
Segundo dados do Mapa da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo, diversos distritos da cidade não possuem nenhum Centro Cultural, ou casas e espaços de cultura. Quando se trata de Bibliotecas, CEUs (Cetro de Educação Unificado), e outros tipos de equipamentos públicos que possam incentivar a leitura, o Jardim São Luís se encontra em uma situação parecida, entre 0,6 a 1,5 equipamentos por 100 mil habitantes.
Bastante atrás de bairros como Butantã, que possui uma média de 14,9 equipamentos públicos de cultura por 100 mil habitantes.
A questão também se reflete na esfera nacional. De acordo com os dados da última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 48% da população brasileira é de não leitores, ou seja, pessoas que não leem um livro há mais de 5 anos. Na capital paulista, 40% dos paulistanos não são leitores.
Luís contou com um amigo grafiteiro para personalizar o espaço @Artur Ferreira/Agência Mural
Quando perguntado sobre a questão financeira, Luís explica que são bem poucas as vendas presenciais de pessoas do próprio bairro. A maioria das vendas são feitas pelas redes sociais, como o Instagram. Além disso, vende alguns itens raros, como vitrolas, câmeras e rádios antigos, itens que, restaurados, são cobiçados por vários colecionadores.
A história vivida por Luís remete a do poeta, comunicador e cineasta Alessandro Buzo, 49, nascido e criado no Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo. Autor de 18 livros, ele criou a Livraria Suburbana, no bairro do extremo leste, mas depois de um tempo se mudou para o Bixiga, na região central, antes de focar na venda online das obras.
“Trabalhar com o livro num país que não tem incentivo à leitura, que não tem o hábito da leitura é muito mais difícil”, diz Buzo. “A gente trabalha com literatura periférica é uma dificuldade maior ainda”.
O primeiro espaço criado por ele também foi em uma garagem alugada e “nasceu da necessidade de ter os meus livros no meu bairro de origem”, conta. “Onde eu cresci, o meu livro não tinha venda em lugar nenhum do bairro.
“Achava que uma pessoa que mora na mesma região que eu deveria ter pelo menos acesso ao livro, se ele tivesse vontade de comprar”
O escritor conta aos risos que quando alugou o espaço, a dona do imóvel achava que abriria mais um bar na região, e até estranhou quando explicou que seria uma livraria.
Buzo que atualmente vive em São Sebastião, no litoral paulista, vê os preços como principal obstáculo para aumentar o número de leitores. “O brasileiro no dia a dia já não tem dinheiro, mal tem dinheiro para comer, pagar o aluguel. O livro acaba ficando em segundo, terceiro, quarto, quinto e décimo plano”, desabafa o poeta.
Apesar disso, ele não desanima. “É uma luta constante contra a falta de incentivo e pra fazer novos leitores, de não encarecer demais o livro. E essa é a luta de todo o livreiro, de todo escritor periférico, de todo mundo que gosta de leitura e gosta de literatura.”