Foi nos versos de guardanapos de papel que a ideia de “Kauira Dorme” nasceu. Roteirizado e ilustrado por Diego Torres e Lucas Andrade, moradores do Jardim Marilda, no Grajaú, e Jardim Iporanga, em Cidade Dutra, ambos da zona sul de São Paulo, eles lançaram recentemente o livro que é “uma homenagem a quem, na periferia, consegue ter a ousadia de sonhar”.
O quadrinho busca refletir sobre o processo de descoberta da vocação nas periferias, por meio da história de Kauira, uma garota que busca respostas sobre o sentido da própria existência. Essa jornada de autoconhecimento acaba por levá-la a viajar entre dois mundos: a mítica Itapera, a morada dos deuses, e a periferia de São Paulo.
Os amigos, que nasceram no mesmo dia, em março de 1991, se conheceram apenas no ensino médio na escola estadual José Vieira de Moraes. A fachada do colégio aparece na HQ. “Essa foi uma preocupação que a gente teve, ou seja: colocar elementos do nosso dia a dia pra trazer essa textura de realidade pra dentro do quadrinho”, explica.
Eles citam a rotina das pessoas na periferia baseado no que viveram na região, como acordar às 5h30 para ir trabalhar, caminhar por vielas e pirambeiras, o transporte público lotado, a escola sucateada e professores no limite e o cansaço de toda essa jornada diária.
As primeiras 400 cópias de “Kauira dorme” foram possíveis graças a um financiamento coletivo realizado por meio da plataforma Catarse, na internet. Ao todo, o quadrinho recebeu a ajuda de 224 apoiadores. O livro foi lançado durante a primeira edição do PerifaCon, evento realizado em março passado na Fábrica de Cultura do Capão Redondo, também na zona sul.
A Agência Mural conversou com os autores sobre a ideia de juntar a mitologia indígena com a realidade das periferias, o cenário dos quadrinhos nas quebradas de São Paulo, o hip hop e a vocação. “A gente quis contar a nossa história na quebrada, em certo sentido, sobre esse processo de descoberta da vocação num lugar que às vezes não quer te dizer qual é”, afirma Diego.
Lucas é biólogo atua em um podcast de divulgação científica, o Alô Ciência. É também ilustrador freelance. Já Diego é formado em Rádio e TV e trabalha com comunicação. Questionados se encontraram a vocação como Kaiura, os quadrinhos parecem ter despertado esse sonho. “É como se um bichinho tivesse mordido a gente”.
Por que uma protagonista indígena?
Nós temos algumas respostas pra isso, já que é uma pergunta recorrente, mas a melhor delas é: e por que não? Por que não uma protagonista indígena? De fato, a gente quis trazer um elemento interessante, e ao mesmo tempo muito nosso, mas sem nenhum tipo de compromisso acadêmico, restrito a algumas pessoas. Acabamos usando a imagem de uma indígena por ser algo comum [aos brasileiros].
Como surge a ideia de juntar dois universos tão diferentes: Itapera, a morada dos deuses, e a periferia?
Há quatro anos, a gente sentou [em uma lanchonete] no Grajaú e rascunhamos as primeiras ideias de “Kauira dorme”. O sistema tenta te convencer a sobreviver e a se encaixar [no mundo] da forma que você conseguir. E às vezes você não tem fôlego pra dar uma parada e pensar no que pode ou não pode fazer. Há certa pressa por se identificar, encontrar um trampo, descolar uma grana, comprar um carro, se dar um nome, entende?
A gente quis falar sobre o processo de descoberta da vocação nas periferias. Que sonho é esse de querer fazer um bagulho que te inspira? Quem sou eu? Essa parada de “possibilidade” é muito louco pra quem é da quebrada. Será que tenho permissão pra chegar e escrever minhas ideias, de desenhar uns bagulhos da hora?
Essa pressão que o sistema exerce, sobretudo na quebrada, tentamos trazer narrativamente em “Kauira”. A gente quis contar a nossa história, em certo sentido, sobre esse processo de descoberta da vocação num lugar que às vezes não quer te dizer qual é.
Como vocês veem o cenário de quadrinhos nas periferias de São Paulo, em especial na zona sul?
Da zona sul, só conhecemos o “Desterro”, do Ferréz e do [Alexandre] De Maio. Mas vale dizer que há grandes chances de começar um movimento de quadrinhos dentro das quebradas por causa do PerifaCon. Foi um evento muito importante para o nerd [periférico] que estava preso dentro de casa. A quebrada começou a se reconhecer. Tem muita gente produzindo coisa boa. O PerifaCon foi histórico. Porque tem gente ali que não se reconhecia enquanto artista. Não dá pra saber, é claro, mas antes do PerifaCon podia haver gente desistindo dos próprios sonhos.
Para a impressão de “Kauira dorme”, vocês utilizaram uma plataforma de financiamento coletivo, correto?
Foi uma grande porta [para publicação]. É e foi uma possibilidade da gente não se vincular às demandas das grandes empresas, por exemplo, o que já seria difícil pela temática que abordamos nesse trampo. Fato é que a gente não teria imprimido os quadrinhos se as pessoas não tivessem acreditado no projeto. As primeiras 400 cópias já acabaram. A partir de agora, a gente vai usar o Catarse como uma lojinha do quadrinho, porque as pessoas estão procurando. Rolou um fervo no último mês.
Até onde ‘Kauira’ chegou?
O financiamento fez “Kauira” chegar a lugares que não chegaria por vias comuns. Chegou no Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Bahia, Paraná, Piauí, e para o pedreiro perto de casa. Pessoas que viram o trabalho e compraram a ideia. Vários amigos compraram, é claro, mas a maioria a gente nunca ouviu falar. Mas vale dizer que a gente não vai se limitar apenas à internet, até porque sabemos que essas plataformas são ainda barreira para muitas pessoas. Fazemos questão de ir aos eventos que rolarem nas quebradas para o trampo chegar às pessoas que a gente quer atingir.
O que é periferia para vocês?
Acho que [periferia] é a vida improvisando em sobreviver. É o arame no chinelo. É formar um time de várzea. É produzir um quadrinho independente. É um improviso por essa humanidade que grita toda hora. A cidade ainda não provê essa troca de vivências. É curioso, mas quando as pessoas têm acesso a um quadrinho como o nosso, por exemplo, já é uma vivência, é também uma forma de troca. A gente falou da nossa realidade para que outras pessoas, fora do nosso círculo social, também pudessem conhecê-la.
O quadrinho faz referência à mitologia indígena, à periferia, mas também aos saraus, ao hip hop. Vocês inseriram versos do Emicida e Criolo, por exemplo. Qual a importância da cultura hip hop e dos saraus na vida de vocês e nessa obra?
As mixtapes dos anos 1990 sempre tinham faixas pra alguém mandar aquele “salve”. E a gente se questionava: “Como podemos mandar um salve nas páginas da ‘Kauira’?”. Decidimos mandar salve nas paredes. Então você vê alguns desses salves para vários grafiteiros lá da região, principalmente do Capão Redondo, e citamos projetos da periferia lá do nosso bairro, como o Cooperifa, o sarau Verso em Versos, sarau Sobrenome Liberdade. Foi nosso modo de homenagear todos esses movimentos. E para ser bem pretensioso, quisemos fazer uma “mixtape em forma de quadrinhos”.
E quanto ao Emicida?
Quanto ao Emicida, o disco de 2013, “O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui”, foi um impacto nas nossas vidas. Um ano depois do lançamento desse disco, a gente estava escrevendo o quadrinho. O Emicida fala: “Você é o único representante vivo do seu sonho na face da Terra”. E a história de Kauira é bem isso. Aliás, a gente quer entregar esse quadrinho para o Emicida e para o Criolo ainda.
Vocês encontraram suas vocações ou ainda estão procurando, como a Kauira?
Acho que o quadrinho fez a gente pensar nisso. Vocação é tudo aquilo que te causa harmonia, que te faz ter a sensação de harmonia. Sentimos que nossa vocação é contar histórias, independente do meio. E quadrinho nós sempre vamos produzir. Depois de “Kauira”, é como se um bichinho tivesse mordido a gente.
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