Ele não é mais um louco na multidão. Horácio Nelson Nunes Gama Filho, 35, é o Loko Solitário. É assim que ele define sua personalidade nômade, incomodada e inconformada, de quem não acha a vida tão bela nem morte tão triste. O Loko Solitário dialoga com poesia, cria rimas contestadoras e passa o microfone de seu podcast, o PodLoko, para que moradores das periferias contem suas histórias, cobrem, denunciem e se expressem.
“Eu escrevo desde criança, foi a forma que eu encontrei para desabafar. Passei a entender que eu era poeta em 2015, quando comecei a ler Sérgio Vaz, a ouvir rap e conhecer a literatura marginal. Eu compreendi que o que eu fazia estava próximo deles, não era simplesmente escrever, era levar reflexão e incomodar”.
Literatura Marginal é um movimento brasileiro que surgiu na década de 1970 como referência a produção literária que circula fora do mercado das grandes editoras. Também traz referência aos escritores independentes e que abordam questões sociais e periféricas.
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural
Ele procura ter sempre uma caneta no bolso e um livro na mão para usar como manifesto. Com suas poesias, já se apresentou em faculdades, escolas, Unidades Básicas de Saúde, Centro Culturais, Organizações não Governamentais, encontros de Mcs e nos lugares onde mais gosta de estar: “na rua, na favela, onde que eu consigo me identificar e encontrar vários eus”.
Seus escritos abordam temas diversos, como racismo, genocídio de jovens na favela, feminicidio, meio ambiente, saúde mental, valorização profissional, pessoas em situação de rua e vida na favela.
As vivências também viram versos. “Eu tive um problema de saúde e andava de bengala, com dificuldade. A gente acabou sofrendo duas enchentes na favela, só ficou a televisão e um colchão”. Essa história de superação e revolta foi transformada no livro “Delírio de um louco”, que ele guarda a sete chaves enquanto tenta apoio para publicá-lo.
Espaço Loko: de consultoria a videoclipe
Nem tão solitário assim. Na estante de casa, uma coletânea de mais de 300 livros, em sua maioria de literatura marginal, e uma máquina de escrever que dá lugar à nostalgia e convida à construção de novos versos.
O ambiente é dividido com seus quatro cães vira-latas: Babi, Dandara, Valentim e Jazz, e por quatro tartarugas, batizadas de Exus e Pombas Giras, em referência ao Candomblé, religião que frequentou por tempos.
A cozinha da casa, localizada em uma das vielas da favela do Vila Clara, zona sul da capital paulista, se transformou em um estúdio onde, todo sábado de manhã, Nunes grava as entrevistas e publica às quintas no Instagram e Youtube PodLoko, seu videocast.
Neles, usa seu icônico colete de couro com um crânio nas costas, item que está por toda parte do cenário e não passa imperceptível. “Quando morrer, a gente vai ficar desse jeito, independente de ser preto, branco, povo originário, de orientação [sexual] Os crânios e caveiras estão aqui para mostrar que todo mundo é igual”.
Com essa máxima em mente, ele passa o microfone para pessoas que resistem e constroem o dia a dia das quebradas de São Paulo, como moradores de favelas, profissionais de saúde, professores, artistas, fotógrafos e cantores.
O projeto, criado em agosto de 2023, nasceu com as rimas, mais precisamente com o convite para que cinco grupos de rap participassem de um ensaio aberto com transmissão ao vivo. Daí veio a ideia de registrar essas conversas, que tem pouco espaço na mídia tradicional. “Seriam só cinco programas, mas ontem a gente completou o vigésimo e já estamos com a agenda cheia”, comemora.
Os convites se estenderam dos amigos mais próximos para artistas de outras quebradas. Seguidores passaram a procurá-lo para participar do programa. Todo material é gravado, editado e publicado por Nunes com apoio de uma amiga chamada Michelle, que mora em Interlagos, zona sul de São Paulo.
As conversas são gravadas no estúdio na cozinha de casa. Aliás, “casa” não seria o nome adequado para este espaço onde Nunes recebe artistas periféricos, para quem oferece consultoria como produtor cultural. A garagem é cedida gratuitamente para ensaios e apresentações.
“Eu gravei o videoclipe de um grupo. A ideia deles era ir no parque Ibirapuera e eu falei: ‘se a música fala da favela, vamos pra ponte, pra viela, pro beco’… Eu encontro potencialidades dentro da favela e permaneço [trabalhando] para que elas sejam conhecidas, ainda que não fiquem famosas”.
De político e loko todo mundo tem um pouco
Formado como pedagogo, ele atua em uma escola privada conveniada com o estado, Escola São Judas Tadeu Educação Especial, na educação de pessoas com necessidades especiais de várias faixas etárias. “Eu aprendo com cada um dos alunos e trago para a favela um pouquinho de cada um e aprendo como é ser humano de verdade”.
Por conta de sua influência nas quebradas, Nunes já foi procurado por partidos políticos para se filiar. Mas esse não é o plano do ativista, o que não significa que ele não se identifique como um ser político, atuando para que mais pessoas possam se expressar e se sentir importantes.
“Abrir espaço [para moradores de periferias] é um ato político. Eu costumo dizer que o que a gente está fazendo dentro da favela é um golpe de estado, é fazer o que eles [governantes] deveriam fazer, mas não fazem”.
Esta reportagem foi produzida com apoio daReport For The World