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Luthier de Mogi das Cruzes preserva tradições afro-brasileiras em cada afinação

Molde de pandeiro confeccionado por Agildo Fernandes Lima

Por: Renan Omura

Em uma estreita oficina no fundo de casa, o luthier e ativista cultural Agildo Fernandes Lima, 62, reforma mais um pandeiro de couro. Com olhar atento, ele questiona a qualidade do instrumento musical: “Os pandeiros de hoje em dia não são como os de antigamente”.

A mão calejada e a agilidade ao manusear as ferramentas entregam a experiência de anos dedicados à luteria. Morador do bairro Vila Cintra, periferia de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, Agildo é mestre na manutenção de instrumentos rítmicos populares brasileiro.

“Caixa do divino, atabaque, alfaia de maracatu, pandeiro de couro, pandeirão. Esses são alguns dos instrumentos que o pessoal traz para mim”, conta o artesão.

Agildo atende a um público diversificado, incluindo grupos de cultura popular, sambistas, capoeiristas e frequentadores de terreiros. “Atendo praticamente todas as manifestações que envolvem o tambor”, diz ele.

O trabalho do luthier não se restringe à manutenção de instrumentos, ele também ministra oficinas em escolas. “Essas oficinas são importantes para as novas gerações se conectarem com suas raízes, garantindo que o conhecimento não se perca com o passar do tempo.”

Apesar de não se considerar saudosista, ele não aprecia o forró eletrônico e prefere o tradicional.

‘Prefiro o Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Trio Nordestino. Hoje em dia está tudo muito industrializado. Até os instrumentos perderam a qualidade’

Para Agildo, a luteria não é apenas um ofício, mas uma forma de resistência. Ele explica que em cada instrumento que constrói ou reforma há um propósito maior: manter vivo os ritmos da cultura popular brasileira.

“A gente vive um apagamento das nossas raízes. Quando conserto um atabaque, por exemplo, estou resgatando um passado de luta e ancestralidade”, relata.

Cada instrumento que passa pelas mãos de Agildo, carrega séculos de história @Renan Omura/Agência Mural

Ritmos, tradição e luta

Cada instrumento que passa pelas mãos de Agildo carrega séculos de história. O pandeirão, por exemplo, é um dos principais instrumentos nas folias de Bumba Meu Boi.

O festival, comum no Maranhão e em outras regiões do Norte e Nordeste do Brasil, é uma celebração marcada por danças, músicas e rituais. O evento homenageia personagens folclóricos como o boi e as suas várias representações.

Os primeiros registros da festividade revelam que o evento era predominantemente celebrado pela população negra, o que gerou forte resistência da sociedade elitista na época. Em 1861, o Bumba Meu Boi foi proibido, resultando em uma interrupção de sete anos.

Outro instrumento marcante é o atabaque, um tambor de formato cilíndrico, predominante em rituais de religiões afro-brasileiras, como candomblé e umbanda. Além disso, é comumente utilizado na capoeira e em ritmos populares brasileiros, como o axé e o samba.

Já a caixa do divino é um pequeno tambor, tradicionalmente utilizado nas celebrações do Divino Espírito Santo, nas congadas, no samba rural e em diversas outras festividades.

“Fomos impostos a uma cultura, a um costume, a crenças, e moldaram tudo de maneira que fôssemos levados a gostar disso. Por isso, hoje, eu luto para resgatar as nossas raízes”, explica Agildo.

Morador do bairro Vila Cintra, periferia de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, Agildo é mestre na manutenção de instrumentos rítmicos populares brasileiro @Renan Omura/Agência Mural

O caminho do luthier

Morando há 44 anos em Mogi das Cruzes, Agildo se define como um “cabra de sorte”. Natural de Itaporanga, no Sertão da Paraíba, o luthier recorda a trajetória marcada por desafios e conquistas que o trouxeram até aqui.

“Sou um migrante nordestino, negro e desprovido de regalias. Cheguei até aqui com muito esforço, mas também com a ajuda de pessoas que acreditaram em mim. Por isso, me considero um cabra de sorte”

Desde cedo, Agildo foi imerso em um ambiente musical. Na cidade natal, a música estava presente, seja nas festas ou na rádio difusora que tocava pelas ruas. Aos oito anos, fez o próprio instrumento, uma bateria improvisada, inspirada na banda da cidade.

“Minha infância não foi diferente da de qualquer garoto da Paraíba. Trabalhei desde cedo na lavoura da minha família e, quando jovem, vim para São Paulo com meus pais em busca de melhores oportunidades”, relata.

Ao longo da vida, o luthier passou por diversas profissões, como operador em uma fábrica de reciclagem, almoxarife, mecânico, entre outras áreas. No entanto, foi em 2007 que ele teve o primeiro contato profissional com a música.

Djembe, tambor originário de Guiné na África Ocidental, para troca de couro @Renan Omura/Agência Mural

Na época, Agildo e a esposa foram apresentados ao tradicional grupo de cultura popular de Mogi das Cruzes, o Jabuticaqui. Logo, passaram a fazer parte do coletivo, participando ativamente das apresentações e trocas culturais.

Graças às inúmeras habilidades adquiridas nas profissões anteriores, o grupo confiou a Agildo a missão de reformar vinte duas caixas do divino, mesmo sem ele ter experiência prévia. O resultado foi surpreendente e, a partir daí, ele iniciou no ramo da luteria.

“Quando construo um atabaque, estou resgatando um passado de luta e ancestralidade dos povos”, afirma Agildo @Renan Omura/Agência Mural

Desde então, Agildo tem se dedicado não somente à construção e manutenção de instrumentos musicais, mas também na confecção de esculturas, espelhos e objetos de decoração. “Sou um cara ajeitado e gosto de fazer de tudo um pouco”, completa.

Após o falecimento da esposa em 2022 em decorrência de complicações causadas pelo parkinson, Agildo passou a praticar capoeira da angola. A atividade o ajudou a se reconectar com a energia e a buscar um novo caminho.

“Tenho muito o que fazer. A luteria é minha forma de manter viva a cultura e fortalecer as nossas raízes. Enquanto eu puder trabalhar, estarei aqui, reformando, ensinando e tocando a tradição adiante”, conclui.

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