Quando procurava um local para ser parceiro do chamado Maior Festival Feminino de Várzea do Mundo, a historiadora Aira Bonfim, 38, ouviu de um administrador de campos a seguinte pergunta: “existe futebol de várzea feminino?”.
Motivada por essa questão e há 10 anos pesquisando a historiografia do futebol praticado pelas mulheres, Aira decidiu colaborar em um mapeamento das equipes femininas que estão em atividade na várzea de São Paulo. O resultado: 146 times foram identificados e 95 ajudaram a compreender quais os desafios para que as meninas entrem em campo.
Esta é a última reportagem do período sobre a Copa do Mundo Feminina. O torneio termina no domingo (20) com a final entre Inglaterra e Espanha. Ao longo das últimas semanas, mostramos os desafios para as garotas das periferias de São Paulo que querem jogar bola.
O estudo conduzido por Aira foi um projeto de extensão da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Para o levantamento, ela teve o apoio da Liga Feminina de Futebol Amador – localizada em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, e comandada pela Maria Amorim.
Mapeamento mostra times em diversas regiões de São Paulo @Reprodução
O mapeamento comprovou a prática do futebol feminino varzeano do norte ao sul e de leste a oeste da capital, pela região metropolitana de São Paulo e, inclusive, em três cidades do interior paulista (Leme, Limeira e Piracaia).
“São Paulo é uma cidade muito grande para a gente só pensar a cartografia a partir do centro histórico e percebemos inclusive que é longe do centro [oficial] que encontramos esse futebol feminino”, afirma Aira.
A região sul encabeça o número de equipes que participaram da pesquisa, com 23 no total. “A zona sul naturalmente pela estrutura geográfica dela, de dimensão, oferece um espalhamento quantitativo, com mais equipes pelo o que a gente computou”, explica a pesquisadora.
Ela cita que há territórios em torno da Represa Billings, com mais áreas disponíveis, onde se formaram algumas dessas equipes.
No mapeamento, a zona leste aparece com 16 times, zona norte com 12, zona oeste com dois times e região central com apenas um. Já na região metropolitana de São Paulo foram encontrados outros 21 times.
Além das localizações, a pesquisa mostra as dificuldades enfrentadas para que possam existir, como por exemplo, se precisam pagar ou não pelo campo, se tem segurança garantida ou até mesmo vestiários disponíveis para elas.
O mapeamento revelou, por exemplo, que 67,4% das equipes têm homens como treinadores.
Os itens que mais consomem dinheiro desses times femininos são transportes, locação de campo e uniformes. Mais da metade das atletas (51,8%) vão de ônibus até os locais das partidas, apenas 12,9% possuem veículo próprio e o restante se desloca a pé e de carona.
Maria Amorim, uma das fundadoras da Liga Feminina de Futebol Amador e do time Apache, ambos localizados em Parelheiros, aponta mais uma dificuldade encontrada pelas jogadoras: “Os espaços para jogar. O domingo todo não é uma realidade para as mulheres jogarem”, explica.
Hoje o futebol feminino consegue espaço dentro da várzea, nos CDCs (clubes das comunidades), mas geralmente depois que os homens jogam. “Quando vai ver o que restou de tempo pra gente, já são mais de 15h”.
Esse aspecto é mais um apontado pelo mapeamento, com o domingo como o dia da semana quando elas mais conseguem jogar, e os horários das 15h, 19h e 20h como os mais possíveis para treinar.
Quase metade das equipes destacam dois facilitadores para a existência do futebol amador feminino nos campos paulistanos: horários reservados e gratuidade para usar esses espaços.
No entanto, os CDCs (Clubes das Comunidades), onde normalmente rolam treinos e partidas, estão cada vez mais caros, segundo a pesquisadora. “Um espaço que deveria ser gratuito e não é, porque existe uma permissão de cobrar pelo aluguel desses locais. Cada vez mais não são campos comuns de grama, de terra. Ou seja, quando tem essa camada de sintético num espaço público, ele passa a ter um custo maior”.
PAÍS DO FUTEBOL PRA QUEM?
Recentemente Aira lançou o livro “Futebol feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)”, de própria autoria e voltado às histórias de mulheres que jogaram futebol até ele se tornar um esporte proibido por lei, em 1941. Por mais de 40 anos, a atividade foi probída.
Mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV-RJ, destaca que a desigualdade de gênero no Brasil expõe diversos contextos que continuam afastando as mulheres do futebol e do capital gerado por esse esporte, inclusive no amador.
“Uma modalidade esportiva que foi proibida para as brasileiras por mais de 40 anos e, ao mesmo tempo, viveram num contexto onde cresceram acreditando fazer parte de um país que diz ser ‘o país do futebol’. Mas de forma pragmática elas não conseguem ascender, na prática e nem mesmo como torcedoras”, diz sobre as violências simbólicas e outras repressões condicionadas ao gênero.
