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Manoel, um ‘velho fuçado’ de Suzano

Manoel José da Silva, ou simplesmente seu Manoel, é um setentão autodidata e polivalente, daqueles que fazem tudo e mais um pouco. É marceneiro, pedreiro e eletricista. Já foi faxineiro, caseiro e até vigilante, por pouco tempo, afinal: “Dá muito sono”. “Meu negócio é trabalhar. Parado é que nunca fiquei não.”

Quando dizem que “Fulano está ligado a 220”, certamente desconhecem esse pernambucano de Vertentes, cidade a 200 km de Recife.

“Tô parado porque a gente tá conversando. Mas se você não tivesse aqui, eu tava é mexendo em algo. Sempre tem coisa pra eu fazer. Eu procuro, eu acho”, declara.

Conheci sua história por coincidência, quando, no mês passado, procurava pessoas que se deslocavam por bicicleta em Suzano, na Grande São Paulo. Recebi mensagem de Elisângela, 36, que me falou sobre o velho pai que “não anda de ônibus de jeito nenhum”.

“Vou me casar no fim de setembro, e aí ele me perguntou onde vai ser. Falei que a cerimônia seria realizada em [Vila Nova] Ipelândia, e ele disse: ‘já fui de bicicleta pra mais longe’. Eu quase morri de tanto rir”, conta. Ipelândia fica a 18 km da casa de Manoel.  

O uso da magrela não é por falta de gasolina. Ele não tem paciência para encontrar um “cantinho” para estacionar no centro da cidade. “É um tal de ‘aqui não pode’, ‘ali não pode’. Quer saber duma coisa: vou de bicicleta rapidinho e volto pra casa.”

Aos 70 anos, Manoel montou banheiro ao lado da oficina para ficar perto do trabalho (Rômulo Cabrera/Agência Mural)

CONSERTOS

Elisângela também elencou um talento do pai. “Tudo o que você pedir, e ele achar que consegue fazer, o velho vai lá e faz: faz com madeira, recicla o que não serve e conserta algo que talvez não tenha mais solução”.

Para encher os pneus de bicicleta, ele criou uma bomba com um motor velho de geladeira. Quando fui visitá-los, havia duas portinholas eletrificadas que davam choques quando os vira-latas ousavam invadir os cômodos da casa. “Com o focinho, eles abrem o trinco e saem por aí”. Também havia um armário feito com a lataria de outra geladeira, três ou quatro casinhas de cachorro produzidas com madeiras de pallet doadas por amigos.

Manoel se diz “fuçado” para essas coisas. Aliás, ele mora na casa azul, número 22, da Rua Geni Gusmão; ou, como me indicaram, “é só procurar a bomboniere da dona Cida”, sua esposa. O terreno fica na comunidade do Rio Abaixo.

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Manoel construiu a casa sozinho – não sem antes montar sua oficina. “Porque eu sou assim: tem que ter minha oficina com minhas coisinhas”, disse. O porquê de preferir trabalhar assim? “Não me aborreço”.

“Se eu tiver ajudante, fico aborrecido porque às vezes você precisa do cara, mas o cara não tá pronto a hora que eu preciso. Sozinho não tenho esse problema. Desço do andaime, vou lá e pego as minhas coisas, ponho no andaime, subo de novo e assim vou devagarinho. Deus me ajuda e quando menos espero, está feito”, descreve.

Naquele dia, não vi dona Cida. Seu Manoel diz que a mulher é tímida e preferiu se esconder dentro de casa.

Manoel vive em São Paulo desde 1974 (Rômulo Cabrera/Agência Mural)

Horas antes, teria reclamado da bagunça no local. “Ela achou que vinha um bocado de gente, sabe, de televisão”, revela. Não me espanta que ao me ver no portão de casa, sua reação tenha se limitado a apenas um “Ah, só você”.

DO SEMI-ÁRIDO À SELVA DE PEDRA

O interesse por construir e reformar vem desde “criancinha”. A memória falha mistura as histórias, mas tudo indica que foi um tio, que à época reformava a casa, no Pernambuco, o responsável por atiçar a curiosidade do garoto. “Foi o problema”, brinca Manoel.

Quando encontrava alguma “faquinha véia-e-sem-cabo”, perguntava. “Ô, tia, cê deixa eu colocar um cabo nessa faquinha?”. A tia logo retrucava: “E desde quando sabe colocar cabo em faquinha, menino?”.

Mas não demorava muito para cederem ao desejo do garoto – talvez a única maneira de sossegá-lo. “[Eu] era um peraltinha”.

Construía o cabo da faca como podia: uma madeira aqui, um prego ali. Por mais mal feito que fosse. “Não deixava de ser um cabo de faca, né?”, comenta.

Ele lembra com alegria dos elogios que recebia das tias. “Não é que esse menino é danado: colocou o cabinho da faca mesmo”. Daí em diante, foram cabos de facas e “peixeiras”, dobradiças de porta, caminhõezinhos com eixo e até espingardas – todas frutos de suas observações e feitas de maneira autodidata.

Manoel perdeu a mãe, Maria Benedita, aos quatro anos. O pai, José Firmino, o abandonou e foi morar com outra mulher, que não aceitou dividir a mesma casa com o garoto e a irmã mais nova. De acordo com ele, a madrasta ameaçou fazer greve de fome caso o pai insistisse na ideia. Foi assim que passou a pular de casa em casa, entre avós e tios.

Aos 10 anos, mudou-se com a família para Palmeira dos Índios (AL). A vida não era fácil, sobretudo para os pequenos agricultores e comerciantes que, em sua maioria, eram moradores de regiões afastadas do centro da cidade. “Você não tinha um açougue ou um mercadinho por perto. Então, pra você ter o que comer, tinha que matar um bicho, pescar um peixe.”

Depois de alguns desentendimentos familiares e de passar algumas temporadas “na casa de estranhos”, Manoel migrou para o sudeste do país. Chegou a São Paulo em 1974 – “em ano de Copa do Mundo”, lembra. Viria para Suzano duas décadas depois com a esposa e os quatro filhos .

Ele é um dos mais de 5,6 milhões de nordestinos residentes em São Paulo, 12,66% da população do estado, segundo dados recentes da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE.

Carteira de trabalho de Manoel (Rômulo Cabrera/Agência Mural)

VOCÊ SABE O QUE É UM ESQUADRO?

Se não fosse casado, diria que seu Manoel tem um relacionamento sério com a própria oficina. A vida do pernambucano parece orbitá-la. Não é de se espantar que tenha construído um quarto, cozinha e banheiro pessoais ao lado da oficina – compartilhado por todos da casa.

A menina dos olhos é uma mesa de corte com uma serra ao centro, projetada e montada por ele. “Não é a [mesa] ideal, mas é funcional. Montei com as condições que tinha”, comenta. “O rolimã corre nesses trilho aqui, ó, e corta no esquadro. O problema foi regular isso, rapaz. Não pode dar errado senão você corta madeira, piso e um bocado de coisa tudo torto”, explica, antes de me surpreender com a pergunta: “Você sabe o que é esquadro, né?”.

Antecipando a minha não-resposta, mostrou-me o tal esquadro, instrumento que utiliza para traçar linhas retas com precisão. “É essa pecinha aqui”

Manoel se descreve como um “tipo curioso”. Não é marceneiro formado, tampouco eletricista ou pedreiro, mas “muitas coisas que eles fazem, eu faço também”, afirma.

“Tem uns caras que é pedreiro, mas vou te contar viu: dá até dó, só faz tortura. Eu não. Sou perfeccionista. Quero minhas coisas perfeitas. Se tiver errado eu vou lá, desmancho e faço direito. Não gosto de nada torto.”

Formando pelo extinto Mobral (Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização), seu Manoel deve suas habilidades à capacidade nata de observação. “Observando que eu aprendo as coisas. Desde moleque, acredita? É vontade de saber fazer.”

Toda a renda vem de um salário mínimo, fruto dum benefício do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social). Manoel afirma não lucrar com os serviços que desempenha. “Faço pra mim e pra eles”, conta, se referindo aos trabalhos realizados dentro de casa para a mulher e filhos.

“O guarda-roupas que eu fiz para Elisângela, ela dá maior valor, acha eu uma pessoa especial, sabe, e fica gostando mais do que se fosse comprado em loja”, completa. Apesar de não cobrar pelos serviços que faz, e dispensar ajuda, Manoel explica: “Não é no geral, entende? Se você me oferecer R$ 50 mil, eu não dispenso não.”

A oficina é preenchida por gargalhadas. Manoel é marceneiro, pedreiro e eletricista, mas vez ou outra é comediante. Não é que esse velho é danado mesmo?

Rômulo Cabrera é correspondente de Suzano
romulocabrera@agenciamural.org.br

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