Em meados de 2018, seis moradoras da periferia de São Paulo criaram o Coletivo de Mulheres da Noroeste com o objetivo de unir forças para combater as crescentes situações de violência vivenciadas por mulheres, sobretudo, nos distritos do Jaraguá, Brasilândia e Cachoeirinha.
Envolvidas em diversas frentes como educação, moradia e meio ambiente, elas decidiram se juntar para pensar como acolher e respaldar mulheres vítimas de violência.
“No início, a gente discutia sobre machismo, condições na sociedade até dentro dos próprios movimentos. Mas também pensando em propostas com foco no que poderíamos fazer de diferente na região para melhorar a situação da vida das mulheres”, conta a cientista social Maria Clara Ferreira, 28, uma das integrantes do coletivo.
Por atuarem em vários movimentos sociais, naturalmente, elas são procuradas por outras mulheres e por quem conhece histórias de vítimas de violência, seja física, sexual, psicológica, moral e/ou patrimonial.
“É um passo muito difícil para as mulheres [vítimas de violência] conseguir perceber que precisam de ajuda. Porque muitas vezes a gente naturaliza tanto que acha que tem que suportar, não conter e não pedir ajuda”, diz Clara.
De acordo com o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo, entre os anos de 2016 e 2019 a violência contra a mulher cresceu 64% na capital paulista, passando de mais de 50 mil vítimas de violência para mais de 83 mil. No mesmo triênio, o número de casos de feminicídio aumentou 72%.
A pesquisa divulgada em outubro passado mostra ainda que a menor taxa de violência contra a mulher registrada na cidade de São Paulo foi no extremo sul, no distrito de Marsilac, com 114,4 registros a cada 10 mil habitantes, enquanto a maior foi registrada na Sé, região central, com 865,4 ocorrências.
Entre os distritos com mais e menos registros de violência contra a mulher, a diferença chega a ser de 7,6 vezes. A média na capital é de 228,1 registros a cada 10 mil habitantes. Nos distritos da região noroeste a taxa de casos varia de 147,4 até 274,9.
A dificuldade no atendimento é vista desde o momento de denunciar uma violência sofrida em casa. Em 2019, no Dia Internacional de Luta Contra a Violência à Mulher, elas reuniram mulheres em frente à delegacia da mulher, na Avenida Itaberaba, na Freguesia do Ó, para chamar a atenção sobre o atendimento desumanizado às vítimas.
“O sentido não era denunciar a delegacia em si, mas chamar atenção para essa estrutura, toda precária, do atendimento [às vítimas] que é difícil. É uma violência que não encaminha para nada”, expõe Maria Clara.
CONSULTÓRIO SOLIDÁRIO
Quando chega ao coletivo uma situação de vulnerabilidade, a primeira ação é ir até a pessoa para entender a demanda. Para isso, as integrantes, que hoje são oito, dividem responsabilidades para acompanhar cada caso, que é trabalhado a partir de suas necessidades. Um dos principais atendimentos necessários é o psicológico.
Em setembro de 2019, a psicóloga Keila Duarte, 42, se uniu ao coletivo para oferecer atendimento individual. Para a realização desse trabalho, uma sala foi alugada, no bairro de Taipas. O aluguel é pago com dinheiro arrecadado com rifas, vaquinhas e contribuições voluntárias. Nasceu então o Consultório Solidário.
No primeiro momento, Keila deu suporte às próprias integrantes. “As mulheres do coletivo fazem muita coisa, desde acompanhar outras mulheres à delegacia, ajudar numa situação de violência doméstica, que precisa tirar de casa. Fora as próprias violências que elas sofrem”, pontua.
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Sobre o atendimento às vítimas de violência, ela disse que no início não sabia como seria o trabalho na prática. “A ideia era, realmente, fazer atendimento psicológico, como faço no consultório particular. Viabilizando a psicoterapia na periferia”.
Para a psicóloga, o resultado desse trabalho superou as expectativas. “A gente começou numa experiência, levando terapia para pessoas que [certamente] ficariam dois anos numa fila [da rede pública] para um atendimento de uma coisa urgente”, conta.
“Tem muitos casos delicados e, como tiveram atendimentos muito rápidos, não chegaram a virar um grande trauma ou situação que vai se arrastando junto com outras coisas”.
Até o momento, 45 pessoas já receberam atendimento psicológico, incluindo crianças e adolescentes. Deste número, 32 são casos surgidos durante a pandemia.
Com o aumento da demanda por atendimento psicológico, outras três psicólogas, que trabalham com o mesmo rigor e cuidado com as informações e preservação da identidade das vítimas, têm eventualmente dado suporte aos casos que chegam ao Mulheres da Noroeste.
Elas também firmaram parceria com o Coletivo Libertas, da PUC-SP, também formado só por mulheres da área de psicologia. A parceria visa a arrecadação de telefones celulares para repassar às mulheres em situação de violência que não conseguem se comunicar.
DO OUTRO LADO DA CIDADE
A assistente social Fernanda Gomes, 32, moradora do Jardim São Luiz, na zona sul, integra a Coletiva Luana Barbosa, formada por quatro mulheres negras com descendência indígena, lésbicas e bissexuais que residem na periferia de São Paulo.
A coletiva foi criada em 2016 após a morte de Luana Barbosa dos Reis, mulher negra, mãe e lésbica não-feminilizada (termo utilizado para se referir à mulher lésbica que não corresponde aos estereótipos de feminilidades definidos pela sociedade).
Luana foi agredida em via pública por policiais militares, na frente do filho, em abril do mesmo ano, na cidade de Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo. O caso gerou grande comoção, sobretudo, na comunidade LGBTQIA+.
“Por questões de identificação social, de gênero e sexualidade, nos reunimos em torno de nossas dores em comum, para pautar a importância da vida e luta de lésbicas negras, pois os números desses extermínios crescem de forma absurda”, discorre Fernanda.
O Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo revela que o número de vítimas de violência homofóbica e transfóbica cresceu 16% entre 2016 e 2019.
“A história dela nos tocou tão profundamente ao ponto de nos reunirmos para nos reconstruir. As particularidades no corpo de Luana também respingavam nos nossos corpos”.
A resistência dessas mulheres tem início no nome do grupo. “Decidimos chamar de coletiva [com a] propositalmente, pois somos um grupo só de mulheres. Por que não chamar de coletiva? O mundo já é masculino demais”, pontua a assistente social.
Desde que surgiu, a Coletiva Luana Barbosa combate a violência contra as mulheres lésbicas e bissexuais, principalmente negras e periféricas, promovendo ações culturais e informativas como intervenções teatrais, rodas de conversas e slam.
“Já fizemos atividades de rodas de conversa, com os mais variados temas, como redução de danos, violência contra a mulher, romantização da maternidade, autoestima, entre outros temas, que está no cotidiano de mulheres pretas e principalmente periféricas com recorte de sexualidade”, conta Fernanda.
SARRADA NO BREJO
Há quatro anos, o grupo criou a Sarrada no Brejo, a primeira festa exclusiva só de mulheres do estado de São Paulo. Pensada e produzida por mulheres negras das periferias e organizada “sem nenhum tipo de edital ou apoio financeiro”.
Visando também a inclusão das mulheres que são mães, em qualquer atividade da coletiva, seja roda de conversa, slam ou a própria festa, é reservado um espaço exclusivo para as crianças, denominado “brejinho”, em que elas ficam seguras aos cuidados de outras mulheres.
“Mesmo que a atividade seja de madrugada, teremos um espaço para as crianças ficarem enquanto suas mães participam da atividade”.
Fernanda reforça também que os projetos do grupo não são “de estruturas físicas”. Muitos são fortalecidos por meio de parcerias com outros coletivos que também atuam pelas periferias de São Paulo. “Aqui na zona sul, a gente tem o Bloco do Beco, um local da comunidade no qual, geralmente, usamos o espaço físico”.
Em parceria com a rede Periferia Segue Sangrando, também da zona sul, a coletiva vem construindo o “8M na Quebrada”. Há três anos, o projeto em referência ao dia 8 de março tenta levar de forma crítica às mulheres das periferias discussões pertinentes à data.
“Vamos para dentro do ônibus, 5h, 6h da manhã, dialogar com as mulheres. Às 18h, a gente faz teatro de rua para poder discutir violência de uma maneira lúdica e responsável, de modo que não atrapalhe o cotidiano daquela mulher”.
A assistente social afirma que há um pouco de resistência por parte da organização de eventos para o 8 de março, em incluir questões relacionadas às mulheres lésbicas e bissexuais.
“Ainda acho que as pautas e as caminhadas do 8 de março continuam sendo brancas e elitistas. Sempre tivemos muitas dificuldades principalmente porque a gente quer trazer a pautas quem atendem mulheres lésbicas”, compartilha.
Para este ano, devido ao coronavírus, não haverá nenhuma programação presencial. “Entendemos que uma campanha também antimachista, antirracista, antilesbofóbica do ‘8M da quebrada’ é nos mantermos seguras e fazer com que outras mulheres também estejam seguras”, disse Fernanda.