Você verá aqui:
- Nas janelas do Morro Doce, Aryani declama a história do bairro
- Grupo fez clipe para contar a trajetória de Perus
- Lema ‘Jaraguá é Guarani’ vira música de banda da região
- Músico cria site com a memória de artistas da região no passado
“Pra você chegar na minha terra, cê tem que pegar direto a Anhanguera. Quando você ver a favela da 16, da 19, km 25 até 22, quando você cruzar o Trópico de Capricórnio, eu moro ali. Um lugar chamado Morro Doce”. Os versos acima são da cantora, compositora e poeta Aryani Marciano, 24.
Nascida, criada e moradora do Morro Doce, no distrito da Anhanguera, região noroeste de São Paulo, ela transformou em canção a história do bairro com mais de 65 mil habitantes, que leva esse nome por conta das plantações de cana-de-açúcar que existiam no espaço no passado.
“Eram colinas de cana de açúcar. Veio aos montes quando os Sem-terra loteou. Fez muvuca, mas aqui o longe. O doce é ter sua casa própria. Pra chegar leva duas horas e o centro só se segura. O morro é doido, a rapa é dura”, diz a compositora em outro verso.
Aryani foi uma das artistas da região que, durante a pandemia, utilizou da arte para contar sobre a trajetória das periferias da região noroeste.
A iniciativa começou meses atrás quando Aryani e o irmão, o designer e músico Vinícius Marciano, uniram seus talentos musicais no edital Bibliotecas em Casa e, na esteira das apresentações em varandas, também aproveitaram a janela de casa para realizar shows.
Diferente das apresentações nas sacadas dos prédios das regiões centrais, na periferia o diferencial é justamente a mistura dos instrumentos ao som dos escapamentos de moto ou a voz estridente que ecoa do carro dos ovos.
“Na pandemia, a gente tem muito mais contato com o barulho dos vizinhos. Todos os dias é construção, reforma, forró, funk, rock. Eles escutam a gente cantando dia e noite”, conta Vinícius sobre a experiência realizada em julho de 2020.
“A diferença é que a gente não mora num prédio, como são essas janelas do centro. Aqui é outra realidade. A gente tem os sons do motoqueiro, do carro do ovo passando constantemente, tem uma visibilidade bem diferente das janelas de prédio. Acho que é uma outra coisa”, diz Aryani.
Durante a experiência, ela percebeu que a ideia chegou mais no público virtualmente do que nos próprios vizinhos.
MIXTAPE E MEMÓRIA
A prática de contar a história dos territórios por meio da música se espraia também entre outros artistas da região noroeste. Mesclando vídeos e áudios de arquivo a batidas, beats e samples, o grupo de rap Procedendo Malvina lançou no fim de novembro de 2020 o vídeo-clipe Intro Perus, que abre o álbum “Sem contar com a sorte – VOL 1 A Fuga de Alcatraz”, que conta com 11 faixas.
Criado na garagem de um dos integrantes em 2013, a formação atual do grupo é composta por quatro membros: Thiago Jordão (Batuta), Higor Lima (Mano Zika), Angelo Gabriel ( Gordão Malvina) e Reivan Sapucaia (Reivan MC), todos moradores de Perus ou bairros da região.
“O nosso objetivo é espalhar a mensagem da periferia, denunciar os abusos e as repressões que passamos, mas também levar alegria, mostrar que nem tudo está perdido”, conta Thiago (Batuta), 27, um dos integrantes e fundadores do grupo.
“Dá pra se unir e fazer um mundo melhor e mais justo e poder viver financeiramente da música, o que também é parte do sonho”, completa.
Os integrantes utilizaram documentários que trazem os primórdios do bairro, como o surgimento da primeira fábrica de cimento do Brasil — a Companhia de Cimento Portaland Perus, fundada em 1926 por canadenses em parceria com empresários de Perus.
Também abordam a greve empreendida por trabalhadores da empresa, autodenominados Queixadas, entre 1962 e 1969, sendo a mais longa greve do movimento sindical do país.
“Acreditamos que, aos poucos, essa história está se perdendo e achamos necessário trazê-la à tona para as novas gerações e aos que não a conhecem”, explica Thiago.
O clipe mostra também notícias sobre a abertura da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco em 1990 e um acidente de trem em 2001 que matou nove pessoas e deixou centenas de feridos.
Criado em 1971, o Dom Bosco foi o depósito final de 1.049 ossadas na Vala Clandestina Comum. Para além de corpos de militantes vítimas da repressão ditatorial, o espaço comportou os mortos pelo esquadrão da morte, indigentes e os que morreram em decorrência da epidemia de meningite nos anos 1970, o que inclui principalmente a população negra e das periferias da cidade.
O rapper cita que o fato de terem utilizado notícias e documentários de época ajudou a levar mais longe o trabalho. “Muita gente achou legal o fato de utilizarmos notícias e documentários de época para lidar com essas questões. Outras disseram que tomou conhecimento sobre o tema por meio do som”, diz.
“O poder da música numa quebrada é enorme, ela pode informar, divertir, ajudar a crescer e, por que não, transformar”, aponta o rapper.
JARAGUÁ É GUARANI
Considerado o ponto mais alto da cidade de São Paulo, o Pico do Jaraguá pode ser avistado de muitos locais diferentes. O que poucos sabem é que o bairro, também localizado na noroeste, concentra 512 hectares (5 milhões de m²) de terras indígenas, distribuídas em seis tekoas (que significa aldeia em guarani), conhecidas como terras indígenas do Jaraguá.
Por lá, a banda Indaiz, que mistura reggae e rap em suas produções, lançou o álbum ‘Jaraguá é Guarani’.
Composto por oito faixas, o disco fala sobre a luta pela demarcação das terras indígenas e a potência cultural da região noroeste, mostrando também a potência das favelas e aldeias dentro dos territórios periféricos onde vive o povo Guarani Mbya. A formação da banda conta com outros quatro integrantes: Sóstenes Matusalém, Bob Della Rua, Zazera Indaíz e Marcelo Jah.
A faixa título, “Jaraguá é Guarani”, foi lançada em meio à pandemia, em maio de 2020, diante da ocupação Guarani contra a especulação imobiliária em área de mata nativa ao lado da Tekoa Pyau, uma das aldeias locais.
“Doa a quem doer, Jaraguá é Guarani. Favela e aldeia, união que não tem fim. Somos a afronta, chegamos pra lutar”, diz o refrão da música, que contou também com a participação de MC Xondaro e Mirindju Glower, do Oz Guarani, e a cantora Elaine Alves.
“Queixadas, indígenas, firmeza-permanente. Existe é resistir. Doa a quem doer, Jaraguá é Guarani”, é o verso final da canção, em referências às palavras de ordem da região.
“Queremos valorizar nossa Ciência Periférica, a oralidade, a sevirologia (conceito que significa a ciência de se virar). Quando nos demos conta que nossa existência é potência, começamos a transformar nosso trabalho em uma leitura diária das lutas históricas e contemporâneas do território noroeste de São Paulo”, conta Alexsandro de Lima, conhecido como Sandro Indaíz, 35, vocalista da banda.
“Queremos atingir um público grande com nossas composições e melodias criadas nas vilas esquecidas pelo poder público, mas, ao mesmo tempo, sabemos da nossa responsabilidade em manter nosso trabalho de base ativo, com os coletivos culturais que atuamos” – Sandro Indaíz
A obra foi dedicada à memória de José Soró, e traz na capa a liderança indígena Sonia Barbosa (Ara Mirim).
Soró foi um dos gestores da Comunidade Cultural Quilombaque e morreu em outubro de 2019, aos 55 anos. Foi comunicador popular, importante articulador da região, mirando o futuro e autossustentabilidade do povo preto e periférico, sendo mentor e mestre de muitos coletivos locais.
HISTÓRIA DA MÚSICA NA REGIÃO
Nascido e criado em Perus, o músico Fábio de Albuquerque, 36, resolveu catalogar e registrar a memória da música do bairro no projeto História da Música de Perus, com o objetivo de tornar pública a trajetória de bandas e músicos de diversas vertentes por meio da memória oral, utilizando vídeos, áudios, cópias de fotografias, partituras ou até mesmo cartazes produzidos nas mais diferentes épocas.
A pesquisa teve início em 2013, quando Fábio e o amigo também músico, Victor Toso, entenderam a importância de resgatar a história da música no bairro. “Fizemos um projeto para o VAI (política de incentivo à cultura na periferia) que não foi contemplado. Mas fiquei com a ideia na cabeça”, diz Fábio, diretor da pesquisa.
“Em Perus, viveu um maestro muito conhecido chamado Pedro Salgado, que foi muito importante para a história da música no Brasil”, é uma das histórias de sua pesquisa, que durante alguns anos ficou esmaecida, mas ganhou vida novamente em meados de 2019. É possível conferir diversas delas no blog do projeto.
“Comecei a gravar uma entrevista por mês, entre músicos e personalidades do bairro, para falar da história local e da música”, conta. “Quando chegou a pandemia em março, eu parei também para não colocar ninguém em risco, já que minha prioridade é registrar a memória das pessoas mais velhas. Infelizmente, alguns músicos faleceram”.
Para ele, a música pode dizer muito sobre o contexto social de um bairro ou região, sendo uma importante forma de registro. “Pelas festas, você pode ver quão rico culturalmente um espaço é. Um bairro que possui uma pluralidade de manifestações culturais e musicais, em tese é um bairro mais rico. Seja uma igreja, um terreiro, bailes, clubes, carnaval de rua”, diz.
“Perus tem uma história muito bonita com uma diversidade musical muito grande. Tem o pessoal do rap, do jongo, maracatu, rock, orquestras. Temos diversidade de várias tribos e sons diferentes, isso agrega à história do local”.