Todo dia ao sair de casa pela manhã, eu passo pela garagem de casa, uma portinha pequena, velha, um espaço com paredes descascadas e que nunca foram pintadas, na verdade nunca teve muita utilidade, já que ficava vazia desde que roubaram o nosso carro. Mas, durante a pandemia, ela ganhou outra função. Passou a ser o coração de algo maior.
Minha mãe se formou em pedagogia aos 48 anos, depois de ter passado por diversos empregos diferentes ela finalmente se encontrou. Começou a trabalhar na nossa famosa Lixas Tatu, uma das empresas mais antigas que temos em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo.O romance com meu pai começou lá.
Ela foi analista química nessa fábrica por muitos anos, saiu para estudar o que gostava, afinal, não tem ninguém de exatas na nossa família.
Sandra Regina, ou, professora Sandra para os alunos, trabalhou seis anos em telemarketing para pagar a faculdade de pedagogia, enquanto cuidava da casa e de dois filhos.
Depois de anos tentando se firmar como professora, ela viu o sonho ser sufocado pelo etarismo, e pela falta de experiência. Por um tempo, trabalhou como professora eventual no Estado, um emprego que só pagava quando alguém faltava. O esforço não refletia no bolso.
As coisas apertaram mais quando meu pai perdeu o emprego em 2019. As contas chegaram sem piedade, enquanto as oportunidades teimavam em não aparecer, no ano seguinte, o mundo parou com a pandemia de Covid-19.
As escolas fecharam, e de repente, com toda incerteza, nossa casa parecia pequena, a garagem menor ainda.
Lembro exatamente do dia em que ela teve a ideia de começar a dar aulas de reforço para alunos do ensino fundamental. Achei loucura, estávamos voltando para normalidade pós pandemia, mas ela reparava o quanto eu e meu irmão estávamos descontentes com o ensino público em EAD (Ensino a Distância), o desespero era ainda maior porque eu estava terminando a escola e buscava uma vaga na faculdade pelos vestibulares.
Foi então que ela decidiu fazer o que sabe de melhor: ensinar. Mas, desta vez, não tinha celular, computador, tablet ou um google meet, era só a nossa garagem.
A princípio, eram poucas crianças, com horários espaçados. Minha mãe cobrava valores sociais, porque sabia que muitas famílias estavam tão fragilizadas quanto a nossa. Ela montou a garagem com o que tinha: imprimiu um cartaz para divulgação, colou no portão, separou umas mesinhas e fez a acontecer.
Tentava ajudar aquelas crianças que estavam sem aulas, ao mesmo tempo que tentava construir uma renda.
O que começou como uma solução temporária logo virou algo maior. O boca a boca trouxe mais alunos, e a garagem começou a se transformar. Com o tempo, apareceu uma lousa, mais mesas, mais atividades e ideias de um trabalho contínuo.
Não é só um espaço físico que mudou, mas também a relação da minha mãe com a comunidade, ela se tornou parte ativa do aprendizado dessas crianças e fez disso o seu maior feito como pedagoga.
E sendo honesta, que delícia é ser filha de professora. Imprimir as atividades, comprar tinta, preparar a decoração para festa de dia das crianças, festa junina, halloween e ver essas crianças crescerem e evoluírem, já que estão aqui há anos.
Agora, ao olhar para a nossa garagem, vejo muito mais do que um espaço improvisado. Vejo o rosto iluminado das crianças que, com curiosidade e alegria, entram ali todos os sábados à tarde. Dona Sandra criou um verdadeiro lar de aprendizado e união e me mostrou que a educação não se limita a salas de aula formais.
Mesmo eu já sendo um tanto grandinha, ela me ensina todos os dias. Me inspirou a começar a trabalhar cedo, porque eu sempre quis fazer faculdade. E não ironicamente, meu primeiro emprego também foi no telemarketing, hoje, sou jornalista e posso contar a história dela.