Há cinco anos, Amélia Souza Pereira, 43, perdeu o movimento do braço esquerdo e o emprego de diarista, após sofrer um acidente doméstico. A situação afetou a autoestima dela, que encontrou em uma oficina um modo de combater a depressão.
Moradora do Jardim Romano, bairro do distrito de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, ela aprendeu a fazer objetos com impressoras 3D e utiliza esse tipo de instrumento para dar mais autonomia para pessoas com deficiência física. A ideia é apoiar atividades do dia a dia como cortar legumes ou fazer um bolo.
Até aqui foram várias criações. Como exemplo, ela fez um suporte de remédios que fica acoplado na cama e facilita o acesso para o paciente para que ele não tenha de se levantar.
Outros objetos ajudam na cozinha. Para quem precisa cortar um alimento com apenas uma mão, ela criou uma espécie de tábua que deixa os alimentos fixos. Também criou uma ferramenta que fixa o prego, sem a necessidade de segurá-lo.
Os objetos são criados após analisar a necessidade de cada pessoa e ver o que é adaptável para cada casa. Ela não cobra por essas ferramentas e o trabalho tem sido divulgado no boca a boca.
“Muitas pessoas me questionam o porquê de eu não cobrar, mas nem tudo se trata de dinheiro, o que mais vale pra mim é o sorriso no rosto dessas pessoas”, explica Amélia. “A minha renda hoje é do benefício assistencial, um salário mínimo, porém alguns amigos me ajudam financeiramente também”.
ACIDENTE
Amélia era uma mulher alegre, independente, ativa e vaidosa, porém, após o acidente doméstico, ela teve uma monoplegia — paralisia que acomete um só membro ou grupo muscular. No caso dela, foi a perda do movimento do braço. “Não tinha motivos para me arrumar ou sair de casa, saía apenas para ir ao hospital”, conta Amélia. “Sem condições financeiras e sem rumo do que faria da minha vida, caí na depressão.”
Para se tratar, ela foi aconselhada pela psicóloga a buscar uma atividade para distração. “Um amigo me falou sobre um laboratório público, que produz materiais 3D, fiquei curiosa e decidi participar das aulas, era próximo da minha casa”, lembra Amélia.
No começo foi difícil assistir às aulas, pois duvidava da própria capacidade e se sentia estranha por estar em uma sala cheia de adolescentes.
A princípio, a ex-diarista desejava criar uma mão mecânica, mas lembrou que as terminações nervosas do braço não existiam mais, algo que não a ajudaria. Isso porque o rompimento da artéria carótida foi rompida quando sofreu o acidente.
Diante das barreiras enfrentadas no cotidiano Amélia criou, em 2015, o primeiro protótipo 3D: um suporte batizado por ela de “a boleira”.
Quando queria testar receitas novas na cozinha, ela sempre encontrava algum obstáculo. Na hora de fazer um bolo, por exemplo, Amélia tinha de virar a tigela de massa, com apenas uma mão, sobre a assadeira e esperar até que caísse.
O protótipo foi um recurso criado para apoiar a tigela enquanto tira a massa com a colher. “Não imaginava que o projeto iria tão longe até receber a informação de que ele seria apresentado em uma feira tecnológica na China”, diz Amélia. O trabalho foi exposto em Shenzhen.
Para criar o primeiro projeto, a ex-diarista teve que fazer um curso de quatro horas de design na Fab Lab Livre SP — laboratório público de fabricação digital criado pela prefeitura de São Paulo. É lá que Amélia ainda faz os trabalhos voluntários.
Na hora da criação é preciso ter feito um esboço no papel com todas as medidas e descrição dos materiais que serão utilizados. Desta maneira, é possível desenhar a proposta na plataforma digital de 3D e depois enviar à impressora.
Mas é preciso ser detalhista: é necessário pensar na aerodinâmica, se vai aguentar o peso, se vai ter atrito, além de encaixar as peças tridimensionais. “Na boleira eu passei duas horas somente desenhando o projeto e mais de dez horas encaixando as peças,” afirma.
A mais nova criação é um segurador de panela feito especialmente para a amiga que fazia coxinhas para vender e perdeu o movimento do braço esquerdo após um AVC (acidente vascular cerebral).
“Para mexer a massa de trigo com apenas uma mão é impossível, pois além do peso é preciso segurar o cabo da panela”, diz Amélia. As patentes são abertas e podem ser usados por quem quiser, basta entrar em contato com ela pelas redes sociais ou informar o seu nome na Fab Lab Livre SP.
APOIO
A aposentada Maria de Fátima Farias, 61, foi uma das beneficiadas da tecnologia assistiva (termo usado para esse tipo de dispositivo de apoio). Após sofrer um AVC, ficou com hemiplegia — paralisia lateral total ou parcial do corpo.
“Sempre esquecia de tomar os remédios. Com o suporte de remédios acoplado na cama, eu não precisava mais levantar, o que me deu autonomia”, afirma Maria, que se mudou recentemente para a Paraíba e ainda utiliza o mecanismo.
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Foi a filha de Maria, a professora Raquel Vicente de Matos, 43, quem soube do talento da ex-diarista, que conheceu no EJA (Educação de Jovens e Adultos), na escola Dário Monteiro de Brito, na Vila Itaim, na zona leste.
“Amélia era a minha aluna e eu via a sua dedicação e autonomia mesmo após tudo o que sofreu”, lembra Raquel. “Quando contei sobre o diagnóstico da minha mãe, ela se prontificou a ajudar. Um dos acessórios mais importantes foi o silicone acoplado a mão, porque a minha mãe faz movimentos repetitivos involuntários e com isso a unha a machucava com esse suporte. Isso não acontece mais.”
A criação dos protótipos animou Amélia a querer estudar mais. Depois do EJA, ela passou no vestibular para cursar direito na Unip (Universidade Paulista), em 2018.
Amélia também foi palestrante das duas últimas edições do Campus Party. Atualmente, planeja lançar um livro, porém, ainda está em busca de novas parcerias para o trabalho voluntário.
Hoje, a maior dificuldade que encontra é a falta de vale transporte especial para pessoas que tem deficiência física ou intelectual. Segundo a SPtrans, ela não tem direito ao benefício. A voluntária já encaminhou os exames da monoplegia, mas ainda não conseguiu o auxílio.