Daiane da Silva, 24, tenta passar no vestibular desde 2016. Em 2021, porém, ela teve de abandonar as provas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para cuidar das filhas recém-nascidas.
“Mesmo com preparo, preciso que minhas filhas estejam bem e alimentadas para que eu chegue mentalmente bem nas provas”, diz.
Ela é moradora do bairro Bela Vista, na periferia de Guarulhos, na Grande São Paulo, e vive com o marido e duas filhas. Daiane relata que enfrentou desafios ao longo do ano para se preparar para as provas de vestibular no final do ano.
“O conteúdo do vestibular vai além de um ensino médio, precisei ressignificar o que era aprendizado. No entanto, sendo uma mãe preta e periférica, não tive o privilégio de seguir meus estudos. Precisei priorizar minha família e casa.”
Daiane da Silva
Assim como Daiane, diversos jovens da periferia da Grande São Paulo tiveram o desempenho nos estudos afetado pela pandemia.Com a atual crise, eles tiveram que escolher entre o trabalho e o estudo. Isso se reflete no número de inscritos no Enem, que caiu drasticamente este ano.
De acordo com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), houve uma redução de 77% dos inscritos com isenção de taxa por declaração de baixa renda em comparação ao ano passado. É o menor número de participantes desde 2004.
Em meio a esse cenário, o governo federal anunciou mudanças no ProUni (Programa Universidade Para Todos) por meio de uma Medida Provisória. O programa que concede bolsas para estudantes de escolas públicas foi estendido para quem estuda em unidades particulares.
A medida foi criticada em meio aos problemas no Enem, exame que serve para acessar o programa.
“Os exames são extremamente elitizados, e beneficia quem tem mais acessos. É triste ver um dos meios de entradas mais inclusivos como o ProUni, sofrendo alterações”, comenta Caio Jade, mestrando em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa da USP (Universidade de São Paulo) e professor do Cursinho Cora Coralina, de Guarulhos.
Trabalhar para poder estudar
A autônoma Letícia Costa, 24, abriu mão do serviço para poder se dedicar aos estudos. Neste período recorreu ao empreendedorismo por sobrevivência, realizando o preparo de comidas veganas por encomenda para se manter financeiramente.
“É muito difícil estar presente nos estudos, meu único pensamento é se terei o que comer no dia seguinte, e como vou pagar minhas contas. Essa incerteza me fez refletir diversas vezes, se de fato o vestibular é algo para mim.”
Letícia Costa
Ela mora sozinha com a ajuda de familiares, no bairro Cocaia, também na periferia de Guarulhos. Letícia relata que para enfrentar os desafios dos vestibulares paulistas, buscou iniciativas educacionais em sua quebrada.
O Cursinho Comunitário Cora Coralina é um exemplo dessas iniciativas. Localizado na Praça Onofre de Miranda, em Guarulhos, o grupo conta com 25 professores voluntários que estudaram em universidades públicas e federais, e retornaram para suas quebradas para compartilhar os conhecimentos adquiridos e apoiar os jovens com os conteúdos dos vestibulares.
“Os cursinhos preparatórios são caros. Até para se preparar há obstáculos. Conheci o cursinho popular na minha quebrada, uma opção acessível que proporciona um ensino gratuito e acolhedor aos estudantes. Ali encontrei uma rede de apoio que me faltava”, diz Letícia.
Amanda Abilio, estudante de arquitetura na USP e professora de redação no cursinho Cora Coralina, relata que não somente os alunos das periferias enfrentam desafios, como também as iniciativas educacionais na quebrada.
“Devido a pandemia, adaptamos os conteúdos a distância, no entanto, a falta de treinamento para usar as plataformas de educação e até mesmo a dificuldade no acesso à internet, prejudicou a adesão dos professores e alunos presentes em aula”, explica.
Com o avanço da Covid-19 , a maioria das escolas nas quebradas suspenderam as aulas presenciais, e milhares de alunos tiveram que enfrentar os vestibulares apenas com os aprendizados de casa.
Tanto os vestibulandos quanto os educadores tiveram que se adaptar a essa nova realidade, mas para muitos professores não foi uma tarefa fácil.
“É muito difícil se conectar com alunos a distância, não sabemos se o espaço onde o aluno se encontra é um local propício para ensino. Foi difícil permanecer apenas na pauta educacional neste ano, precisávamos saber se o aluno estava se alimentando”, desabafa Amanda.
“Não só como educadora, mas também como estudante preta e periférica, espero ver mais dos meus ocupando este espaço universitário. Sonho pelo dia que olhem para nós, e planejem um vestibular mais acessível”, conclui Amanda.