“Virou poesia em nossos corações”, dizia a nota de pesar publicada pelo Sarau da Cooperifa na manhã da última quarta-feira (22), anunciando a morte de uma das suas mais célebres integrantes, Rose Dorea, aos 51 anos.
Vida interrompida, mas um legado que continua. A começar pelo título de eterna Musa da Cooperifa, apelido dado com carinho pelo amigo Sérgio Vaz, escritor, poeta e fundador do coletivo e sarau da zona sul de São Paulo.
“Título que levo com muito orgulho. Acredito que mais pelo fato de apresentar o sarau, de estar sempre a frente desde o começo”, disse em entrevista ao especial Poesia Delas, do Nós Mulheres das Periferias, em novembro de 2021.
Rose Dorea deixa legado de luta pela cultura periférica cooperifa.oficial
Seu amigo e companheiro de poesia, Sérgio Vaz, confirma. “Era uma das poucas mulheres da época que estava à frente de projetos culturais na periferia. Ela falava: ‘sou uma mulher negra, gorda e periférica. Somos um projeto cultural importante!’ Ela tinha esse orgulho, ela simbolizava essa luta”.
Rose escrevia poesias e recitava muitas de seus autores preferidos com amor e emoção – sobretudo as de Sérgio. Uma das que mais gostava, segundo o próprio escritor, era “Novos Dias”, porque traduzia os desafios constantes dos moradores das periferias, como nos versos:
“Não confunda briga com luta
Briga tem hora pra acabar
E luta é para uma vida inteira”
E até para depois dela, como reflete Sérgio Vaz. “[Com a perda da Rose] acho que a gente vai ter que lutar mais do que já lutava. Perdemos uma general, uma capitã, ainda mais para enfrentar este país injusto e racista”.
Ela faleceu em 21 de janeiro, quatro dias antes de comemorar 52 anos, dividindo a data com o aniversário de São Paulo, cidade onde nasceu. Rose sofreu um acidente vascular cerebral, segundo o site Espaço do Povo, e foi socorrida no hospital Campo Limpo, na zona sul da capital paulista, mas não resistiu.
Ainda sensibilizados com o falecimento de Rose, a sobrinha Michele Adriana Schulle e o amigo Sérgio Vaz conversaram com a Agência Mural sobre a trajetória, o legado e os desejos da “Musa da Cooperifa”.
“Luta é para uma vida inteira”
Com um ano de idade, Rose foi morar no Jardim Pirajussara, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Era apaixonada pela cidade, onde viveu em uma das três casas construídas no quintal da família, sempre unida.
Quem fala de Rose não titubeia: uma personalidade generosa e protetora, com um coração enorme onde podia caber o mundo. Aquela pessoa de prontidão para ajudar todos, principalmente a família, com quem fazia questão de celebrar cada conquista.
“Recentemente eu fiz uma surpresa e trouxe ela para casa que tinha acabado de comprar. Quando ela entrou em casa e soube que era minha, se acabou de chorar, e falou do orgulho que sentia por saber das minhas lutas e desafios”, conta a sobrinha, e grande admiradora, Michele Adriana Schulle, 42, que trabalha como professora.
Ao lado de Sérgio Vaz, Rose Dorea tornou a Cooperifa conhecida nacionalmente @Léu Britto/ Agência Mural
Com 10 anos a menos que a tia, a tem como referência, já que também foi criada por ela. “Minha tia fez um papel paterno muito importante na minha vida. Eu cresci sem a presença do meu pai, então ela tomava a frente de muitas situações. Dava bronca, conselhos, cuidava, incentivava… Quando a gente ia a alguma festa, ela me acompanhava para nenhum ‘engraçadinho’ chegar perto de mim. Eu achava isso muito engraçado. Pra mim, essa proteção é uma linguagem de amor dela”.
Rose, mãe solo, deixa fllho de 14, com quem fazia questão de conversar sobre qualquer assunto e participar ativamente das atividades e conquistas. Prezava sempre pela conversa e pelo afeto, mas se mexessem com alguém que amava, virava uma “leoa”, como descreve a sobrinha.
Para o amigo Sérgio Vaz, a braveza descrita por muitos, inclusive pela própria Rose, era na verdade a garra de uma mulher que levava tudo a sério, que assumiu o papel de guerreira e que não tinha tempo de brincar.
Como grande parte das mulheres das periferias, ela foi obrigada a amadurecer desde bem cedo. Tanto que Michele lembra quando a tia tinha 16 anos e já assumia responsabilidades de uma mulher adulta e precoce, com uma vida movimentada e às vezes sem tempo.
Rose trabalhou como faxineira em casas de família, foi manicure, apoiadora política e chegou a prestar serviços em um posto de saúde. Mais tarde, tornou-se agitadora cultural na Secretaria de Cultura de Taboão da Serra, até chegar a função de produtora cultural da Cooperifa, levando para o coletivo sua experiência e determinação.
“Não tenho conhecimento técnico, tenho conhecimento da vida”
Rose Dorea ao Nós, Mulheres da Perifeira.
Era apaixonada pelo trabalho na Cooperifa. Chegou a dizer em entrevista que, se precisasse, viraria dia e noite trabalhando, sem tempo ruim, tamanha alegria no seu fazer. “[Ela passava] 24 horas pensando na Cooperifa e em cultura periférica. Era uma pessoa leal, uma leoa leal”, completa Sérgio.
Será poesia em nossos corações
Foram mais de 20 anos na coordenação e produção dos saraus da Cooperifa, coletivo e movimento criado por artistas periféricos em 2001. Ora nos bastidores, onde mais gostava, ora apresentando e recitando poesias de seus autores preferidos, Rose estava sempre lá.
A relação de amizade com o poeta e escritor Sérgio Vaz começou antes da relação cultural e profissional, quando ele foi morar em Taboão. A turma de amigos em comum ajudou a estreitar os laços.
Com integrante da Cooperifa, Rose passou a se interessar e se engajar mais pelo universo da poesia. O ambiente machista dos bares na década de 2000 não a intimidou de lutar por aquilo que acreditava: democratizar a cultura nas periferias, dando luz à poesia marginal, sobretudo entre mulheres pretas das quebradas.
“No começo a gente não tinha muita participação das mulheres porque era em um bar”, disse Rose, lembrando que a Cooperifa começou (e segue até hoje) no Bar do Zé Batidão, na Chácara Santana, zona sul de São Paulo. “A poesia abriu um grande leque para nós negros dizermos o que a gente pensa e mostrar o que a gente acredita: nossas religiões, nossas crenças, nossa forma de se vestir e a forma que a gente quer usar nosso cabelo”, acrescenta.
Para Vaz, ela transformou e também foi transformada pelo movimento já que, assumindo um papel na Cooperifa, se sentiu motivada em retomar os estudos. Terminou o supletivo e ingressou na faculdade de Serviço Social, que terminou pouco antes de morrer. Mais um sonho realizado.
“Eu voltei a estudar por conta da Cooperifa, por acreditar que nós podemos. É nós por nós”
Rose Dorea, ao Nós, Mulheres das Periferias
Vaz faz questão de ressaltar a importância de Rose para a cultura periférica, devido a sua doação e sua luta constante por si e pelos seus.
“Acho que ela gostaria de ser lembrada como uma mulher negra e periférica que realizou seus sonhos através da cultura, da cidadania”, reforça. “O sistema quer que a gente seja apenas um número e ela conseguiu ser uma pessoa reconhecida no lugar onde vive. Isso é para poucos: ser diferente entre os iguais e ser respeitado pelos iguais justamente por ser diferente”, exalta o poeta.
O texto usa falas de Rose retiradas da entrevista a Poesia Delas, do Nós Mulheres das Periferias, em novembro de 2021. A escolha foi feita como uma forma de deixá-la tão presente no texto, quando nas periferias da Grande São Paulo.