Era madrugada e, no metrô da linha 3-vermelha, um jovem voltava da zona leste de São Paulo com 31 drinks de whiskey com água de coco na cabeça. Mas a bebida não o impediu de esbanjar conhecimento. “Eu sei o Homem na Estrada de cor”, se gabou sobre uma das mais importantes e longas músicas do Racionais MCs.
A frase causou espanto em um homem que tomava uma cerveja tranquilamente no vagão. Vestia uma camisa vermelha com a foice e o martelo amarela, símbolo usado pelos partidos comunistas. “Você não sabe”, interrompeu o estranho. O questionamento era válido. São quase nove minutos do rap lançado nos anos 1990.
“SEI SIM”, enfatizou o garoto da zona norte que, na sequência, ensaiou os primeiros acordes: “O homem na estrada reconhece sua vida, sua finalidade…”
Quando ele ia se empolgando, foi interrompido. “Não é reconhece, é RECOMEÇA. Ele saiu do sistema prisional”, corrigiu o estranho para espanto do cantor ébrio. “Sabe tanto que erra a primeira frase”.
Depois da advertência, o comunista ameniza. “Tu quer cerveja?”. “Quero”. Quem negaria?
Começava assim a ser travada uma épica discussão. Para quem vinha com um pouco de álcool a mais na mente, era uma questão de honra. Mostrar o quão da periferia era. O erro na letra da música não o intimidou.
“Sei [a música] sim!”, disse depois de um gole na cerveja, jogando na sequência uma série de razões geográficas que justificariam seu saber. “Eu cresci no Munhoz, em Osasco, vi Piauí matando todo mundo”, revelou meio aleatoriamente sobre a periferia da cidade da Grande São Paulo, e a violência dos anos 1990.
Mas o questionador não desconfiava da origem do cantor e, sim, do conhecimento. “Você pode ter crescido [na periferia], só não ouviu os baguios”, retrucou.
Foi então que, após mais um gole na cerveja alheia, ele embalou. De cor, cantou quase um minuto inteiro seguido do Homem na Estrada.
Um homem na estrada recomeça sua vida
Sua finalidade a sua liberdade
Que foi perdida, subtraída
E quer provar a si mesmo que realmente mudou
Que se recuperou e quer viver em paz
Não olhar para trás
Dizer ao crime: nunca mais!
Pois sua infância não foi um mar de rosas, não
O vagão veio à loucura. Quer dizer, não. Não veio, mas deu pra imaginar isso na mente do recitador como uma bela cena de filme.
De todo modo, o mais importante é que o esforço foi reconhecido. “Sabe um pouco mesmo”, disse o jovem de vermelho. “Ele só queria desculpa para tomar minha cerveja”.
Na sequência, ele fez uma análise dos Racionais. Avaliou que depois de um tempo o grupo teria músicas mais comerciais, ou influenciadas pelo mercado. Ensaiava teorizar uma grande viagem, mas foi interrompido. Empolgado, o outro jovem não queria teoria. Queria mostrar como sabia cantar e todas as letras.
Mas admitiu dificuldades. “Eu não consigo cantar Nego Drama. Mas gosto”, explicou. “E gosto do Domingo no Parque”, contou.
“É FIM DE SEMANA NO PARQUE”, corrigiu pela última vez o cara de camiseta vermelha, que pegou sua cerveja e pulou na estação Sé.