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O dia em que minha mãe me tornou um folião

Por: André Santos

“Aprendi a amar o carnaval com minha mãe, suas marchinhas e suas histórias”

Arte: Magno Boges/Agência Mural

Acordei num susto violento, minha mãe me sacudia e chamava por meu nome, eu não entendia o que estava acontecendo. Minha mãe sempre foi muito carinhosa ao me acordar, na verdade a palavra era ‘piedosa’, ela sabia bem o quanto eu sofria para levantar naquelas manhãs de aula.

Eu, catatônico, pulei dentro de um shorts que ela segurava próximo ao chão, como de costume ela o subiu até a altura do meu peito e eu, discretamente, o baixei. Enfiou em minha cabeça uma camisetinha regata que eu mesmo terminei de vestir. Sonolento, calcei os meus bambas e recebi, ainda sentado na cama, um copo de café e um pão com manteiga. “Come logo que vamos nos atrasar”, disse minha mãe bem animada.

Eu não sabia o que estava acontecendo, tinha certeza que era feriado, portanto, dia de não ir à escola e também, normalmente, minha mãe não nos levava ao médico nos seus dias de folga do trabalho, se fosse o caso, ela não estaria tão feliz. ‘Talvez vamos as compras’, pensei, ‘meus bambas já estão bem gastos’. Descemos o beco em que morávamos de mãos dadas e com passos rápidos, na verdade minha mãe me puxava beco abaixo.

Para o meu total espanto ainda estava de noite, escuro. No ponto só havia a gente, minha mãe olhava a todo o momento para o relógio em seu pulso. “Faz anos que não vou pra avenida, você vai adorar”, fiquei ainda mais confuso, ali onde esperávamos no ponto já era uma avenida: Avenida Nossa Senhora do Loreto, Vila Medeiros, periferia norte de São Paulo. Eu não tava entendendo nada, mas como minha mãe estava feliz, não quis perturbá-la, sempre gostei de ver minha mãe feliz, sorrindo e cantando.

O ônibus que nos pegou estava completamente vazio, o motorista aproveitando as ruas e avenidas vazias, voava pela madrugada. Lá dentro minha mãe e eu sacudíamos e ríamos, não teria como ficar com sono naquela aventura, ‘se a canoa não virar, olê, olê, olá, eu chego lá’. A essa altura o dia já vinha amanhecendo, uma mancha rosa clara surgia ainda tímida numa das extremidades do céu, era a primeira vez que via o sol nascer. Não havia nuvens no céu, ‘Allah-la-ô ô ô ô ô ô, mas que calor, ôôô’.

Descemos do ônibus e o dia já reluzia, a rua em que baixamos estava cheia de gente, ‘cidade maravilhosa, cheia de encantos mil’, ninguém andava pelas calçadas e sim no meio do asfalto.

Nunca tinha visto a cidade daquele jeito, ‘quanto riso, ó, quanta alegria’, as pessoas se abraçavam, riam, cantavam, dançavam e pulavam. Todos estavam com roupas engraçadas e cabelos coloridos ‘Olha a cabeleira (linda) doZezé’.

Nos entranhamos na multidão festiva e fomos, ‘o abre alas que eu quero passar’. Eu já pulava e gritava e minha mãe ria, muita gente bebendo direto das garrafas, ‘garrafa cheia eu não quero ver sobrar’. Subimos uma arquibancada de madeira numa avenida larga, estava repleta de pessoas em pé, sentadas e alguns poucos dormiam, ‘Chegou, a turma do funil, todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto’, passaram a noite ali assistindo aos desfiles das escolas de samba na Avenida Tiradentes, antigo local de desfiles antes da cidade inaugurar o sambódromo do Anhembi.

O impacto visual que me causou ver uma escola de samba na avenida ainda me arrepia, um mar colorido de gente dançando e cantando, carros imensos, com mais gente alegre e dançando sobre eles, eu gritava, pulava e queria mais, ‘índio quer apito se não der pau vai comer’.

A primeira escola de samba que vi na vida, Leandro de Itaquera: “Chegou, Em forma de afoxé na passarela, Os filhos da Leandro de Itaquera, Axé pra quem tem fé, e quem não tem, Axé pra você também”. Nunca esqueci esses versos cantados por Eliana de Lima e milhares de outras vozes, samba enredo de 1989, eu tinha 9 anos de idade e assim como todos ali comungava aquela felicidade catártica, ‘Não me leve a mal, hoje é carnaval’!

Outras escolas ainda passaram naquela manhã. No final, descemos as arquibancadas e nos juntamos aos foliões nas ruas, minha mãe e eu de mãos dadas rindo e brincando, era como se o carnaval me dissesse ‘você tem, você tem que me dar seu coração’ e eu dei cheio de alegria, ali nem ‘a jardineira estava tão triste’, nada acontecia se não a festa. Espumas, confetes e serpentinas formavam um mundo novo pra mim, onde as músicas eram fáceis de aprender ‘hei, você aí, me dá um dinheiro aí’, ‘eu mato, quem roubou minha cueca pra fazer pano de prato’, ‘você pensa que cachaça é água?’. Sempre ouvi minha mãe feliz cantando essas marchinhas, mas ali era muito mais legal, agora entendia porque ela gostava tanto!

Já perto do fim do dia estávamos exaustos, mas eu só tinha vontade de gritar ‘daqui não saio, daqui ninguém me tira’. No ônibus de volta, cansado de tanta alegria e por ter acordado cedo, dormi. Provavelmente minha mãe cantarolou ‘dorme, filhinho do meu coração’. Daquele dia em diante me tornei um legítimo folião.

Hoje, passados tantos anos, sou eu quem leva minha mãe aos blocos de mãos dadas, ouvimos e cantamos juntos marchinhas antigas que ela canta desde sempre e eu só compreendi como são legais e espirituosas naquela manhã de 1989. Aprendi a amar o carnaval com minha mãe, suas marchinhas e suas histórias.

Seguimos Sassaricando, ‘porque sem sarraricar, essa vida é um nó’, e brincando cada carnaval com muita festa, aproveitando ao máximo cada bloquinho e escola de samba, afinal de contas, ‘caiu na rede é peixe, lê-lê-a, eu não posso bobear’.

Por André Santos, correspondente do Jd. Fontalis
andresantos@agenciamural.org.br

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