Assim como muitas outras paulistanas, a vendedora Valdirene Ferreira, 46, divide as 24 horas do dia em uma jornada dupla entre casa e trabalho. Mesmo com o tempo escasso, a falta de oferta de eventos e espaços próximos à região onde reside é o que faz Valdirene ficar quase cinco meses sem frequentar nenhum tipo de atividade cultural.
A última programação cultural ocorreu quando ela deixou o bairro Jardim Julieta, onde mora na zona norte de SP, para ir até o Museu Catavento, no centro da cidade.
Histórias como a de Valdirene refletem os dados apresentados pela pesquisa “Viver em São Paulo: Cultura na Cidade”, realizada pela Rede Nossa São Paulo em parceria com o Ibope, publicada em abril.
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O estudo mostra que 30% dos moradores da zona norte afirmam ser a distância o maior impeditivo para frequentar um equipamento cultural.
Em relação ao ano passado, houve um aumento de 8% sobre o mesmo indicador na região norte. O local fica apenas atrás da zona oeste, onde cresceu em 13% o total de pessoas que não reclamam da distância.
“Fica tudo no centro, né? Os teatros e os museus, por exemplo. Aí você junta a distância da nossa casa para o centro, com a dificuldade em ir até esses lugares, o trânsito, a falta de tempo. Fica complicado mesmo”, comenta Valdirene.
Quando o assunto é exclusivamente atividade cultural ofertada pela Prefeitura de São Paulo, Valdirene e seus vizinhos saem na desvantagem. Isto porque o bairro onde residem fica no distrito da Vila Medeiros — segundo o Mapa da Desigualdade, um dos piores locais em relação à cultura oferecida pelo poder municipal.
De acordo com os indicadores da pesquisa, é literalmente zero a quantidade de acervos de livros, casas de cultura, cinemas, equipamentos culturais públicos, museus e teatros.
Mas isso não significa que não exista cultura no local. Com a falta de incentivo e investimento por parte da prefeitura, os próprios moradores precisaram criar novos jeitos para consumir cultura.
“A gente já alugou um ônibus para levar as crianças aqui do bairro em alguns eventos culturais pela cidade. O nosso último passeio com eles foi ano passado para o CEU Pimentas, em Guarulhos”, conta Valdirene.
Para botar em prática, eles contaram com ajuda financeira dos vizinhos e doações do comércio local.
“É complicado porque a gente só faz se tiver doações mesmo. Tipo, agora, a gente conseguiu uma visita para que as crianças conheçam o [estádio do] Corinthians [em Itaquera, na zona leste], mas ainda estamos atrás de dinheiro para alugar um veículo para levar”, finaliza.
CINEMA NA VILINHA
Assim como Valdirene, a designer e colagista Ione Maria, 24, também precisa se virar para frequentar programações culturais.
Ione reside na Vila Albertina, bairro pertencente ao distrito do Tremembé, na zona norte. A diferença da região para a Vila Medeiros é que o distrito onde Ione mora possui uma casa de cultura — o único equipamento cultural local ofertado pela Prefeitura.
As atividades acontecem com ajuda de ONGs, igrejas ou de forma orgânica entre os moradores.
Pensando na distância entre essas pessoas e esses locais, Ione resolveu fazer o caminho oposto. Ao invés de levar as pessoas para algum ponto de cultura, ela trouxe essa experiência para os moradores, especialmente as crianças.
“As crianças aqui já têm a autonomia delas de lazer, elas já fazem cultura sozinhas. Elas ocupam as ruas aqui do bairro para brincar. Mas eu queria expandir isso”, conta a artista.
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Daí surgiu a ideia de estender uma lona no chão e colocar almofadas e cobertores em uma viela perto da casa de Ione – junto com uma tela e um projetor para passar filmes para as crianças.
“Eu quis facilitar o meu acesso a eles e o acesso deles com novas formas de cultura. Eu só queria que fosse mais fácil para eles terem acesso a coisas que eu só tive contato porque frequentei ONGs e saí do bairro para isso”, explica.
Assim como Valdirene, na Vila Medeiros, Ione, no Tremembé, também encontra dificuldades para realizar a atividade cultural. Tudo que conseguiu para fazer acontecer o cinema na vilinha foi emprestado, o que torna difícil realizar o evento novamente.
De acordo com a pesquisa “Viver em São Paulo: Cultura na Cidade”, é necessário descentralizar atividades e equipamentos culturais na cidade.
“Essas crianças não têm como sair do bairro para consumir cultura. Poucas conseguiram ir no cinema mesmo”, comenta Ione.