Barulho de helicóptero sempre foi sinônimo de: “deixa eu ligar a TV porque tá acontecendo alguma coisa na favela”.
Em Paraisópolis, uma das maiores comunidades de São Paulo, onde eu vivi por mais de 10 anos e onde mora boa parte dos meus amigos e familiares, sempre foi assim.
Bastava ligar em algum jornal policialesco, e pronto. Era notícia sobre a favela. Nem preciso dizer se era boa ou ruim, não é mesmo?
Era 2009. Dez anos atrás. De minha laje, avistei vários helicópteros sobrevoando minha cabeça. Nessa época, eu estudava jornalismo no Mackenzie pela manhã.
O dia começava bem cedo, às 2h da madrugada, quando eu saia entre os becos e as vielas, de segunda a sábado, para esperar uma van que pegaria cinco pessoas, todas de Paraisópolis, para trabalhar na Feira da Madrugada, no Brás. Lá, eu era atendente de lanchonete.
À tarde, tentando dormir para dar conta do trampo e da faculdade, os helicópteros da polícia e de emissoras de TV interrompiam meu sono.
E, principalmente, o de meus familiares lá na Bahia, já que para eles, que assistiam tudo pelo jornal, Paraisópolis tinha virado palco de guerra.
Do alto de minha janela, eu avistava alguns moleques subirem rumo aos prédios da Giovanni Gronchi, a famosa avenida onde estão aqueles prédios com uma piscina por andar, em fotos que simbolizam a desigualdade brasileira.
Eles tacavam pedras em carros e em prédios porque sabiam que estavam sendo transmitidos ao vivo pela TV. Era a retroalimentação do espetáculo midiático. 15 minutos de fama para meia dúzia de meninos.
E, claro, um prato cheio para a mídia que, infelizmente, ainda mostra as favelas como algozes da cidade. Como um lugar perpetuador de atos violentos, como o berço do coitadismo.
Diante daquelas cenas na televisão, eu era mostrado como um dos bandidos narrados pelos jornalistas, em rede nacional.
Ao desligar a TV, eu era um entre os 100 mil moradores de Paraisópolis com medo de levar um tiro vindo de algum helicóptero da polícia.
Um ano depois daquele 2009, eu conheci dezenas de estudantes de jornalismo em um curso sobre comunicação cidadã.
Era uma galera, toda periférica, reunida para estimular uma visão mais crítica da mídia. As perguntas eram muitas: por que só passa na imprensa coisa ruim da minha quebrada? Como eu posso mostrar o outro lado?
Ali nascia o Mural, que, em 24 de novembro de 2010, virou um blog hospedado na Folha de S.Paulo. Está lá desde então.
Éramos dezenas de correspondentes comunitários, não dando voz à periferia, como muita gente costuma dizer. A periferia tem voz. Surgíamos como um canal para amplificar essas vozes.
E assim foi. Assim tem sido ao longo dos últimos 9 anos. Fazendo jornalismo profissional.
Ainda em Paraisópolis, do alto de minha laje, já na viela do Campo, eu sempre avistava um ponto verde em meio aquele amarronhazado dos blocos expostos.
Era uma casa inteiramente verde, recoberta de garrafas PET. Foi uma de minhas primeiras coberturas para o blog Mural.
Era o Antenor Feitosa, um aloagono de menos de 50 anos, que havia se aposentado por causa de um problema no coração. Ele resolveu, para fugir do marasmo, virar o arquiteto que nem ele mesmo sabia que era.
Antenor construiu sua casa com mais de 25 mil garrafas PET.
Bati na portão dele. A recepção não foi tão amigável, é claro. Cabreiro, seu Antenor se questionava por que um jornalista (estudante, aliás) estaria interessado em sua vida. Afinal, para ele, morador de favela também era sinônimo de ser bandido.
Acalmei seu Antenor. “Olha, eu moro aqui na viela do lado, sou estudante de jornalismo e queria contar a sua história. Nada sobre tráfico, violência, essas coisas. Só quero saber sobre você.”
Foram horas dentro daquela casa de oito cômodos, cheia do verde das garrafas pet reluzindo cada ambiente, e também refletindo, já orgulhoso, os próprios olhos verdes de Antenor.
Do blog Mural, a história foi parar na home do Uol. Em 20 minutos, eu já receberia e-mails de arquitetos, de revistas querendo telefone e endereço de seu Antenor.
A história dele foi parar em tudo quanto é jornal, revista, rádio.
Os parentes do nordeste ligaram felizes ao vê-lo na tevê. Aquela primeira matéria ganharia um quadro pregado na parede dias depois.
Depois ele, vieram outras histórias como a da Jaque Conceição. Professora que teve um artigo sobre letras de funkeiras aceito na Universidade de Columbia. Uma vaquinha feita havia umas semanas não tinha conseguido 1% da meta.
Eu sabia que eu precisava contar aquela história. “Uma amiga me perguntou por que você não pedia ajuda à Valesca Popozuda”, foi a aspa dela, já lide.
A história viralizou. Do blog foi para o impresso da Folha, no Jornal Extra do Rio, que imediatamente entrevistou a Valeska. Saiu em sites gringos. Foi parar até na Fátima Bernardes. A Valesca ajudou. A vaquinha bombou. Jaque viajou.
Outras dezenas de histórias vieram. Sempre com a preocupação de não embelezar a favela, já que não é nada glamoroso, pelo contrário, viver ao lado de um esgoto a céu aberto.
Em 2011, Paraisópolis estava mais uma vez sob os holofotes da imprensa. Entrada ao vivo no Jornal Nacional. Cavalaria e até mesmo tropa de choque instalada por dias. Meus avós, na Bahia, quase tiveram um infarto. Tentei acalmá-los, dizendo que estava tudo bem, apesar de não parecer a partir do que estavam assistindo.
Para além das histórias do blog Mural, eu entendia que precisava ir mais além. Naquele ano ganhei o Terceiro Premio Jovem Jornalista, do Instituto Vladmir Herzog, após abordar os paradoxos educacionais na comunidade. Fui mais: decidi, ainda como TCC, escrever um livro reportagem sobre o cotidiano da favela.
Um ano depois, nasceu o “Cidade do Paraíso – há vida na maior favela de São Paulo”. Eleito o melhor livro-reportagem daquele ano no Mackenzie, ele saiu em uma editora comercial. E em 2013, fui convidado até para participar da Feira Internacional do livro de Buenos Aires, na Argentina.
Paraisópolis estava novamente sob os holofotes. Não mostrando a tropa de choque, mas a radialista Lindalva, as histórias dos nomes das vielas, o erveiro-corretor de imóveis.
Por causa do livro, foram dezenas de entrevistas, pra Record, Cultura, em rádios, revistas… Como se todos tivessem descoberto, pela primeira vez, uma nova Paraisópolis.
O mundo fantástico das periferias.
Mas era apenas o cotidiano não mostrado porque as redações e seus jornalistas estão encravados no centro expandido da cidade. Ainda são majoritariamente brancos, de classe média. E não conseguem, ou não sabem, como cruzar a ponte para contar as verdadeiras histórias.
ORIGENS
Sou baiano. Nasci em Vitória da Conquista, mas cresci dividido entre os cafezais de Barra do Choça, a terra do café, com direito até concurso da Garota Café, e os becos e as vielas de Paraisópolis.
Antes mesmo de pensar no jornalismo, eu sempre gostei de contar histórias. Cenários não faltavam para aquele menino dividido entre a zona rural e no meio de uma favela fincado entre prédios luxuosos.
Tanto que o maior sonho daquele menino baiano, aos 8 anos, era ter um amigo. Um amigo que estudasse no ensino médio. Como deveria ser incrível trocar ideia com alguém que, pra ele, havia chegado tão longe.
Meu pai é analfabeto, minha mãe estudou só até a terceira série do primário. Não havia referências. Não havia sequer escolas onde eu vivia.
O primeiro ônibus rumo ao ginásio só chegou em 2000. Para o ensino médio, em 2006. Antes, um ou outro se estudante se aventurava, em cima de motos e bicicletas, nas estradas de chão batido de Barra do Choça para chegar a escola mais próxima, a quase 30 km.
Meu tio Benevuto foi um deles. Vendeu 10 leitões para comprar uma moto e ir estudar. Enfrentava poeira e chuva, e o preço alto da gasolina. No ano seguinte, dei sorte de poder ir à escola dentro de um busão.
Assim que ingressei no ensino médio, também me tornei professor. Lá no povoado onde eu morava. Primeiro nos Oito Paus, onde eu ia de bicicleta, e depois na Cavada, na escola municipal Rui Barbosa, ao lado de minha casa, onde estudaram meus familiares.
Eu tinha 17 anos. Dei aulas de alfabetização à quarta série para jovens e adultos por três anos, até voltar para SP, há 12 anos.
Sou o primeiro de uma família de cinco irmãos, 100 primos e 20 tios a concluir o ensino médio, a fazer faculdade.
O primeiro a se tornar mestre (não de obras, como meu pai). O primeiro a se tornar doutor, em Educação, pela PUC, daqui a três anos.
Ainda em Barra do Choça, existe apenas um blog de notícias, para uma cidade de 40 mil habitantes.
Nos últimos 10 anos, no entanto, as escolas de lá passaram a usar, em sala de aula, crônicas que eu escrevia antes mesmo de estudar jornalismo.
Trabalhavam com os alunos histórias como a de Vera Lucia, uma tia sonhava ter um fogão a gás. Hoje, seu maior sonho é ter um emprego e não viver apenas com os R$ 220 que recebe do Bolsa Família para sustentar quatro filhos.
No ano passado, fizeram a primeira feira literária da escola de ensino médio. Havia em cartazes, fotos e textos meus espalhados. Era uma homenagem não a José de Alencar, mas ao Vagner de Alencar.
Dois alunos, no palco, leram “O pé de angelim”, texto que conta a história de uma árvore centenária do povoado onde eu vivi e onde está sepultada a minha mãe, desde 2007.
Professores dizem que os alunos costumam duvidar e dizer que eu não existo, que sou uma mentira.
Questionam: como assim ter um jornalista e escritor vindo de um povoado onde moram apenas 200 famílias?
Com os textos em sala de aula, agora eles tem olhado para o povoado, apesar de diversos problemas, com um pouco mais de amor.
De volta a São Paulo e para a cobertura jornalista. Ao lado de uma galera na Agência Mural já contamos mais de 2.500 histórias.
Continuamos no blog na Folha, e produzimos conteúdos para outros canais. Mais recentemente chegamos à TV aberta. Lançamos o Giro da Quebrada, um quadro no novo telejornal matinal da Band. Mostramos o que acontece do Grajaú à Brasilândia, de Poá a Paraisópolis. Temos 80 correspondentes espalhados pelas periferias da Grande São Paulo.
Costumo dizer que nosso sonho, no futuro, é não existir. Porque existimos para preencher os buracos de uma cobertura jornalística das periferias ainda carregada de estereótipos.
Até lá, a gente continua contando nossas histórias, firmando parcerias para potencializar essas narrativas, e mostrando que não é legal dizer que a periferia é carente.
Afinal, a periferia quer viver, mas viver não é só comer e beber, como dizem. Ela quer mais postos de saúde e hospitais, quer salas de cinema, de teatro e espaços culturais nas suas quebradas, quer transporte público de qualidade e melhores condições de moradia.
Para fechar, finalizo com um trecho do meu livro, sobre Paraisópolis, mas que simboliza todas as nossas periferias:
Entre os becos e as vielas de Paraisópolis, os moradores vão tecendo suas histórias, ora em busca de comprovar sua residência, ora dizendo que é possível, sim, sair e entrar desses pequenos labirintos sem uma Ariadne (deusa da mitologia grega) que os conduza.
Acima do tráfico de drogas e da violência, Paraisópolis tem vida. Se alguns becos e vielas são esconderijo do tráfico, a maioria deles une as pessoas que, com suas vozes e histórias, usam essas ruelas e esquinas para costurar o dia a dia na imensa favela localizada no coração do bairro chique do Morumbi.
*Texto apresentado por Vagner de Alencar durante 3º Congresso de Jornalismo de Educação (Jecuda)