Andressa Allegranci e Thiago Allegranci
Por: Raphaela Ribeiro
Notícia
Publicado em 27.03.2024 | 16:28 | Alterado em 28.03.2024 | 14:35
Com as ondas de calor extremo que atingiram a Grande São Paulo em março, confeiteiras que produzem ovos de Páscoa artesanais sentem os efeitos das mudanças climáticas no seu ganha pão. Aumento dos custos de ingredientes e dificuldades de produção e armazenamento já estão na lista dos novos desafios das doceiras das quebradas.
Essa é a avaliação de Jayne Nascimento, 19, que produz ovos de Páscoa há quatro anos na região do Jardim Sapopemba, na zona leste, pela sua confeitaria, a ChocoJay. Neste ano, ela enfrentou o período mais desafiador do seu trabalho: “com o calor, é muito complicado trabalhar com chocolate”, afirma.
Em março, São Paulo estabeleceu um novo recorde de temperatura, com os termômetros registrando até 35º C. O fenômeno segue a tendência de 2023, ano mais quente já registrado no Brasil, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Na prática, o aumento da temperatura se refletiu na subida dos preços dos ingredientes – em especial o cacau, cujo valor praticamente dobrou desde ano passado – e em dificuldades na produção, armazenamento e comercialização dos ovos de Páscoa, que forçaram confeiteiras a adotarem novas estratégias para resistir ao calor.
“Foi terrível produzir ovos [durante as ondas de calor]. O chocolate derretia muito facilmente nas mãos e ficava com marcas, por conta da temperatura”, diz Larissa Marceli, 28, que mantém uma produção pequena na cozinha de sua casa, no Jardim Capelinha, zona sul. Durante março, os termômetros registraram a temperatura mais alta para o mês de desde o início da série histórica em 1943, conforme informações do Inmet.
Por produzir doces caseiros em pequena escala na sua doceria, chamada LariMar Confeitaria, a geladeira de Larissa não é potente o suficiente para suportar os efeitos do clima extremo. “Com o abre e fecha da geladeira tem sido muito difícil fazer casquinhas, desenformar os ovos, fazer os recheios. Nada endurece nesse clima. Tem sido bem desafiador”, relata.
Ela chegou a ter que refazer ovos que não cristalizaram e endureceram completamente. “Eu trabalho com chocolates decorados, como cenouras de chocolate com o corpo laranja e o topo verde. Se quebra ou derrete, eu não consigo mais separar, porque vai misturar o chocolate e não vai ter mais como reutilizar. É prejuízo”, desabafa.
Larissa também sentiu o impacto do clima nas vendas: ela foi obrigada a recusar encomendas fora da região onde mora, por não poder garantir que os ovos resistiriam ao transporte e ao calor que, segundo ela, “é inimigo das confeiteiras”.
No início da produção, Larissa utilizava chocolates nobres em seus ovos de Páscoa. Contudo, devido ao calor, passou a adotar a cobertura fracionada. Isso porque os chocolates gourmet contém manteiga de cacau, mais sensível ao calor, enquanto a cobertura fracionada utiliza óleos vegetais hidrogenados ou interesterificados, o que confere maior resistência às altas temperaturas.
“A minha cozinha é simples, doméstica. Nessas condições fica inviável usar o chocolate”, diz. “Mesmo a cobertura fracionada, mais resistente, derreteu com o calor extremo”.
A substituição de ingredientes não foi a única medida adotada por Larissa. Para cumprir os prazos das encomendas, ela optou por produzir os ovos durante a noite, das 20h às 2h, aproveitando o clima mais ameno.
Quanto à entrega, a responsabilidade passou a ser do cliente: “os ovos são muito sensíveis, tanto a casca quanto o recheio. Mandar de motoboy é inviável, porque [o ovo] vai ficar na bag e vai esquentar. Então eu deixei o cliente como responsável pela retirada e com a orientação de ficar sempre na geladeira.”
Ela também precisou diminuir o prazo de validade dos produtos. “Por mais que eu saiba que [os ovos] aguentam sete dias, eu tenho dado ao cliente o prazo de três a cinco dias [para consumo]”.
As confeiteiras ouvidas pela reportagem afirmam que há um receio em refrigerar ou não o chocolate, pois a variação de temperatura pode alterar sua textura, sabor e cor. “O ideal seria manter a cozinha a uma temperatura fria, cerca de 20º C, para que o chocolate cristalize e endureça sem necessidade de refrigeração”, explica Larissa.
A confeiteira Flávia Menha, 33, que mantém a confeitaria YI Doces, também teve que adaptar seu processo de produção e entrega de ovos de Páscoa. Ela passou a trabalhar à noite, das 19h às 23h, para produzir os doces em sua residência na Vila Zatt, zona norte. Há quatro anos trabalhando no ramo, este é o primeiro em que precisou adotar a rotina noturna.
É também a primeira vez que ela opta por não incluir ovos recheados com frutas no seu cardápio, devido ao risco de deterioração acelerada pelo calor.
Ela estabeleceu horários específicos para as entregas, geralmente nas tardes de sexta-feira e sábado, e optou por preparar os ovos no próprio dia da entrega, a fim de evitar que eles derretam. As entregas têm uma distância fixa, para minimizar riscos no transporte.
“No ano passado, apesar de ter sido quente, tivemos uma distribuição mais equilibrada do calor, com algumas semanas mais frescas. Este ano, foram muitos dias quentes seguidos. Neste período em 2023, eu já tinha todos os ovos que pretendia vender prontos. Hoje, estou com apenas 30% da produção pronta porque o calor afetou demais”, relata a também confeiteira Luzia Torres, 55, na sua quarta Páscoa à frente da confeitaria Quero Mais Doces Finos.
Ela utiliza chocolate nobre, que requer temperagem, um processo manual de choque térmico para que o chocolate cristalize e endureça. “Quando está muito quente, eu resfrio o chocolate para dar o choque térmico, mas ele esquenta muito rápido, derrete e se perde chocolate e tempo”.
Quando isso acontece, é preciso derreter novamente o chocolate e reiniciar o processo. “Este ano está sendo bem improdutivo”, diz.
Para lidar com as altas temperaturas, Luzia passou a acompanhar diariamente a previsão do tempo, para programar a produção das cascas de chocolate para os dias mais frescos e as coberturas e recheios para os dias mais quentes.
Ela produz os ovos em seu ateliê na Vila Carmosina, na zona leste, a apenas alguns minutos de sua casa, mas tem evitado ficar até de madrugada produzindo os ovos no ateliê, por segurança. “Se eu estivesse em casa, certamente estaria trabalhando durante a madrugada”, conta.
Nesta semana, quando as temperaturas atingiram a casa dos 20º C, Luzia aproveitou para recuperar o tempo perdido e concluir a produção atrasada.
À medida que as temperaturas continuam a subir, as confeiteiras passam a investir em soluções a longo prazo. Flávia, por exemplo, antecipa que o clima cada vez mais quente deva influenciar na escolha dos ingredientes e na substituição do chocolate nobre, com maior qualidade e sabor, pela cobertura fracionada, mais resistente ao tempo.
“Como o chocolate nobre é um produto bem sensível, se as temperaturas continuarem aumentando, acho que vai ter muita gente deixando de trabalhar com ele e passando a usar cobertura. O chocolate nobre é bem mais caro e muito mais trabalhoso”, prevê a confeiteira.
A troca de ingredientes não deve ser a única mudança. As produtoras de doces sentem-se cada vez mais compelidas a investir na climatização de seus espaços de trabalho, embora essa solução ainda seja distante para a maioria delas.
“Quem tem mais recursos consegue se esquivar melhor das mudanças climáticas. Quem tem uma cozinha climatizada, freezers e geladeiras grandes conseguem armazenar muita coisa e não vai ficar à mercê do clima”, avalia a confeiteira Larissa.
Sua colega de profissão, Luzia, concorda. “O ar-condicionado ainda é um sonho. Com um capital de giro limitado, preciso priorizar a compra de matéria-prima. A Terra está ficando cada vez mais quente, e temos sentido isso ao longo do tempo. Precisamos nos adaptar, porque parar de trabalhar não é uma opção”.
Jornalista e pós-graduanda em jornalismo digital e contemporâneo, com trabalhos publicados na Folha, HuffPost Brasil, Revista AzMina, The Intercept, Terra e Agência Pública. Nascida e criada na zona leste, é correspondente de Itaquera desde 2023.
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