O Dia dos Pais, que em 2025 será celebrado em 10 de agosto, é uma data já não tão recente. Criada pelo mercado publicitário dos Estados Unidos, chegou ao Brasil na década de 1950 e segue até hoje com uma nomenclatura que não dá espaço para a diversidade. E o problema vai muito além de um nome.
Ter a parentalidade validada é um dos desafios da comunidade LGBTQIAPN+, sobretudo das pessoas trans das periferias. Elas lidam com problemas que vão da falta de estrutura nas cidades e nos serviços e até ausência de equipes de saúde pública preparadas para lidar com os cuidados dessas famílias.
“Não há direitos, leis ou espaços que assegurem a população LGBTQIAPN+. A maioria dos ganhos vem por jurisprudência”, aponta Frank Ferreira, 30, designer e pessoa não binária, da Vila das Belezas, zona sul da capital paulista.
Diferente de paternidade e maternidade, a parentalidade é mais abrangente. O papel e responsabilidade de educar e cuidar é desempenhado por cuidadores que compõem o núcleo familiar, sem se restringir à questões biológicas ou a um gênero específico.
Fonte: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Politize e Seguro Unimed
Frank e o companheiro Victor De lira, 29, analista de laboratório, têm vivenciado os desafios do processo de adoção desde que decidiram ter filhos. A ausência de informações, o não uso de linguagem neutra, a exigência de declarar o gênero em formulários e até a falta de debate sobre diversidade nos grupos de apoio são alguns dos problemas enfrentados.
“O sistema brasileiro [de adoção] é binário. Você não vai encontrar termos que abarquem pessoas não binárias. Sempre vai ser pai ou mãe, feminino ou masculino. Até em documentos, como RG, vai estar [o nome do] pai e mãe, mesmo que sejamos um casal diverso”, critica Frank.
O jeito foi se munir de muita informação e se preparar para vivenciar a parentalidade – que é uma experiência única para cada família, como garante o músico All Ice, 27, morador do bairro Maria Rosa, em Taboão da Serra. Pai de Malcom, 8, ele gestou o filho e transacionou seu gênero após a criança completar um ano.
“As pessoas falavam: ‘isso não é coisa de mãe!’. Eu me cobrava muito porque, a sociedade cobra a gente. As coisas foram fazendo mais sentido depois que eu transicionei. Eu entendi que na verdade eu nunca fui mãe, mesmo quando eu tentava performar uma figura feminina. Eu nunca estive próximo do que é ser uma figura materna. Eu sempre fui um pai”, conta.
Mas para além dos desafios, quem fala sobre os potenciais da parentalidade trans? O que a diversidade nas famílias pode suscitar para as futuras gerações? Como criar famílias livres de preconceito? Acompanhe as histórias.
Amor em dose tripla
Dreads nos cabelos e comportamento serelepe, dançante e artístico. Tal pai, tal filho. É assim que All Ice define o filho Malcom. “Ao mesmo tempo, a gente é muito diferente, ele é taurino, eu sou geminiano, nós dois somos geniosos para caramba”, brinca.
Malcom é fruto do relacionamento heteronormativo de All Ice com o ex-companheiro, com quem foi casado por três anos. Foi a partir da gestação que ele começou a observar mais sua identidade de gênero.
A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, publicada em 2013, garante o direito reprodutivo e sexual dessa população pelo sistema público de saúde.
Depois da separação, Ice conheceu Matuzza, mulher trans com quem viveu por cinco anos e que assumiu o papel de mãe de Malcom. Ele deu sorte: são dois pais e uma mãe presentes e cheios de amor para dar.
Embora não vivam sob o mesmo teto, os três dividem o cuidado do filho durante a semana. E como todo pai, Ice foi construindo seu papel a partir das vivências com o filho: foi no trocar de fraldas, na queda do primeiro dente, nas primeiras palavras e na alfabetização do filho que ele foi se formando pai.
“Ele é muito mimado, mas também muito amado. Eu sou o pai mais bravo, porque se eu deixar os outros dois viajam na maionese”, brinca sobre a criação compartilhada.
Com uma relação muito próxima, o filho acompanha o pai nas apresentações musicais e já mostra interesse pela arte. No ambiente dos shows, eles também convivem com a diversidade e a pluralidade, favorecendo a comunicação livre – que Ice afirma não ter tido na infância.
Para ele, tanto pais cisgêneros como pais trans cometem erros, mas a experiência da paternidade trans amplia as possibilidades de formar uma geração livre de preconceitos. Por isso, All Ice faz questão de reforçar que existem cada vez mais homens que geram seus filhos e que é necessário oferecer cuidados para essas famílias.
“Eu acho que nós, pessoas trans, temos o lugar de família negado. É muito poderoso poder construir sua própria família e passar a sabedoria que você tem para uma criança, para reverter essa situação na sociedade”.
E nesse Dia dos Pais, vale até um recadinho para o filho: “Que ele nunca desista dos seus sonhos, continue sendo inteligente, um querido e que ele possa crescer com tranquilidade e com muita saúde”.
Além dos primeiros passos
Um quarto sem pintura e móveis, mas repleto de amor. Um cômodo esperando as crianças para ser decorado e virar um ambiente de troca, carinho e contação de histórias antes de dormir. Esse é o sonho de Frank e Victor, que passam pelo processo de adoção de crianças.
Habilitades há um ano, entraram esta semana no Sistema Nacional de Adoção interessades em crianças de 3 a 6 anos. “Estamos esperando o telefone tocar. Coração está feliz, mas com preocupações”, comenta Frank.
Voluntáries em um grupo de apoio à adoção, Frank e Victor, contribuem no letramento LGBTQIAPN+ para futuros pais @Arquivo pessoal
”A gente não se controlou e compramos dois aviões e um joguinho da memória”, acrescenta Victor, cria do Capão Redondo, extremo da zona sul de São Paulo.
Juntes há nove anos, quatro deles sob o mesmo teto, compartilham tudo: de planos profissionais à transição de gênero de Frank, que já vislumbrava a parentalidade. “O desejo veio da minha experiência com a minha mãe, da vontade de construir esse vínculo de amor e amizade [que tenho com ela] com as crianças que vão chegar”, conta.
Para Victor, o desejo de ser pai não foi tão espontâneo. “Era um sonho distante. Eu nunca me coloquei nesse lugar de construir uma família, pela minha vivência de criança periférica, sem tantas oportunidades, por sofrer racismo e homofobia. Mas Frank trazia essa vontade e a gente começou a pensar na prática como seria isso”.
A que conclusão chegaram? Que não há receita ou tutorial para exercer a parentalidade. Então, começaram a estudar sobre como debater assuntos relacionados a gênero de forma natural, lúdica e fluida.
O casal se conheceu em aplicativo de relacionamento há 9 anos e está próximo de realizar o sonho da parentalidade @Arquivo pessoal
Pavimentando o caminho, como gostam de dizer, Frank e Victor atuam como voluntáries em grupo de apoio a adoção em Embu das Artes, na Grande São Paulo, e tentam ajudar famílias no letramento de gênero.
Além disso, aconselham futuros pais a criar rede de apoio e observar o que da criação que tiveram não gostariam de repetir. No final, o objetivo é sempre permitir que as crianças sejam quem elas quiserem ser.
“Acho que é uma potência uma criança ser criada em uma relação trans-homoafetiva que tem letramento LGBT. Aqui a gente não tem definição de papel de gênero, de homem e de mulher. A gente não vai ter restrições de roupa ou brinquedo, vai ser um espaço de segurança”, planeja Frank, que sonha em receber o título de “mapá”, um apelido carinhoso que faz a junção dos termos mãe e pai. “É como se fosse exercer a paternidade de um jeito maternal”, completa.
“A mensagem que eu queria deixar para as crianças que vão chegar é que elas serão muito bem acolhidas, terão liberdade para existir e que a gente vai amar muito elas. Estamos prontes, podem vir”, fala com alegria Victor.
Livros e filmes para falar sobre transexualidade com os filhos
Pingo em Busca de Ouro – livro infantil de Jonathan Van Ness conta a história de um porquinho da índia não-binário que pratica ginástica ritmica e tem jeito único de ser.
Meus dois pais – livro de Walcyr Carrasco conta a história de Naldo, que depois da separação dos pais vive uma nova configuração familiar com o pai e o companheiro dele.
Arlindo – história em quadrinhos da Ilustralu retrata um adolescente que vive em uma cidade do interior e tenta driblar o preconceito.
Tomboy – filme conta a história de uma menina que gosta de se vestir como menino e de estar entre eles.
Alice Júnior – filme retrata a vida de uma adolescente trans que se muda de cidade e passa a conviver com preconceitos. Ela sonha em dar seu primeiro beijo.

