Um dos dias que marcaram as periferias de São Paulo durante a ditadura militar ocorreu na zona norte de São Paulo, em junho de 1980. Moradores da Brasilândia/Freguesia do Ó reivindicavam água, asfalto, creches, postos de saúde, hospitais e um Pronto-Socorro Municipal para o bairro, e marcaram uma manifestação.
Porém, no dia do protesto, eles notaram a falta de ônibus circulando pelo bairro, o que impediria a chegada ao ato marcado para aquele dia 21 de junho. “Fomos caminhando rumo à Regional. Alguns andaram até 5 km para chegar lá. Éramos mulheres, crianças e alguns homens”, relembra Sonia Regina Bischain, 63, moradora da Vila Penteado, um dos bairros que formam a Brasilândia.
O grupo foi surpreendido na chegada à administração municipal do território. “Um grupo de 50 homens à paisana saiu das imediações do prédio da regional, nos cercou e nos atacou com soco-inglês, paus e bombas de gás lacrimogêneo. Muitas pessoas ficaram feridas.”
A repressão ficou denominada como “Pancadaria do Ó” e os moradores exigiram a apuração dos fatos. A Câmara Municipal instaurou uma Comissão Especial de Inquérito. “Devido à repercussão do fato, conquistamos algumas melhorias para o bairro: creche, posto de saúde, duas linhas de ônibus, asfalto e iluminação em algumas ruas e o pronto-socorro, que em homenagem à nossa luta recebeu o nome de 21 de junho, o dia da pancadaria.”
Sonia é uma das pessoas que tem trabalhado para garantir a lembrança desse período nas periferias. Ela é autora de “Nem Tudo É Silêncio”, que conta a história de quatro gerações de mulheres que viram a formação do bairro.
Ela comenta que na época da ditadura locais mais próximos da Serra da Cantareira, serviram para desova de corpos. “Era comum depararmos com corpos mutilados nas beiras dos rios, em terrenos baldios, ou próximos às matas.”
Na adolescência, durante os anos 1970 e 1980, ela recorda dificuldade de conseguir ter acesso às informações, por conta da censura. “Tive o privilégio de trabalhar em uma editora a partir de 1975 e tinha acesso aos trechos censurados dos livros que publicávamos. Tínhamos que retornar (aos autores) originais para que refizessem os trechos censurados”, conta a moradora.
O caso da Pancadaria foi uma forma de tentar calar moradores do bairro, que sempre se manifestaram, afirma Sônia. Segundo ela, desde a origem, a população da Brasilândia se organizou para reivindicar melhorias, após um processo de ocupação que fez o bairro crescer rapidamente. A ocupação se deu de maneira irregular, quando terrenos foram loteados, surgiram favelas e várias casas foram construídas em regime de mutirão.
‘Nós fomos reconhecidos como um bairro de muita luta. A maioria das lutas foi organizada por mulheres’
Sônia Regina Bischain
Sônia cita o Clube de Mães, tipo de organização que se espalhou por vários bairros das periferias. Essas organizações cobravam a implantação de creches, postos de saúde, escolas, hospitais, pronto-socorro, linhas de ônibus, iluminação pública, asfalto de vias públicas, coleta de lixo, limpeza urbana, desobstrução das ruas, possibilitando a entrega de gás, móveis e eletrodomésticos.
A repressão considerava essa mobilização como perigosa e muitas eram tachadas de comunistas e subversivas.
Moradores também atuava nas Comunidades Eclesiais de Base, da igreja católica, que teve um papel importante, a partir de 1968. As pessoas mais atuantes das CEBs eram mais informadas sobre o que estava acontecendo no país. Participar desses grupos, contudo, era perigoso.
“Víamos homens nas missas gravando tudo, seguiam a gente nas ruas, nas manifestações, nos fotografavam”, ressalta Sônia.
Com a falta de equipamentos culturais, os jovens faziam shows nas praças públicas da região. Para isso, precisavam de autorização da prefeitura, que por um tempo passou a não permitir essas ações. “Quando conseguíamos realizar, percebíamos agentes da repressão fotografando nossos rostos, outros infiltrados provocavam brigas e tumultos para dispersar os participantes.”
“Algumas vezes nos pegavam nas manifestações e entregavam em casa (as moças), e diziam coisas pros nossos pais, tipo, “tava fumando maconha; tava se agarrando com um cara no meio da rua; tava com gente perigosa; fiquem de olho em sua filha, anda com gente que não presta”, completa.
Apesar da redemocratização nos anos 1980, Sônia aponta que a violência nas periferias durante o regime não foi um período de exceção. “Mortes e perseguições, principalmente, contra a população de maior vulnerabilidade social continuam acontecendo nos dias atuais.”
Sonia acha lamentável que o presidente Lula não tenha realizado nenhum ato referente ao golpe de 1964. Apesar disso, no dia 1 de abril, o dia que de fato aconteceu o golpe, movimentos populares realizam o cordão da mentira, desfilam contra os massacres de ontem e hoje no centro de São Paulo.
‘Não podemos esquecer. É preciso falar, denunciar, esclarecer. Memórias precisam ser lembradas, relembradas, compreendidas, para que não se repitam‘