Era um sábado. Por volta das 12h, estava voltando pra casa de metrô, quando uns amigos do meu bairro, Guaianases, extremo leste de São Paulo, me ligaram me chamando pra ir à Avenida Paulista, cartão postal da maior cidade da América Latina.
Eles demorariam um pouco, então eu deveria esperá-los na estação Consolação. E assim fiz. Quando cheguei, sai da estação e fui sentar em um ponto de ônibus vazio para observar as pessoas enquanto esperava encontrar o pessoal.
Não se passaram cinco minutos de que eu estava ali sentado e se aproximaram três policiais — dois homens e uma mulher. A pergunta inicial da abordagem foi “cadê a droga?”. Eu não estava com droga e respondi isso. Aí me mandaram levantar as mãos e ficar de costas. Fui revistado.
Depois me pediram meu documento, o RG, e perguntaram de onde eu vinha. Falei quem eu era, como eles queriam. Quando falei onde morava, um deles com cara de espanto me perguntou por que havia vindo de tão longe até a Paulista. Respondi que fui encontrar amigos. Não pareceu convencido, pois durante a abordagem, esta pergunta foi me feita pelos mais três vezes.
Com a avenida cheia de pessoas, em sua maioria, brancas, com olhares desconfiados e curiosos em minha direção, de frente a alguns comércios, me pediram para esvaziar os bolsos e colocar sobre um banco tudo que tinha. Tirei tudo, inclusive os elásticos que uso no tratamento dentário e um chaveiro que ganhei na noite passada. Quando viram a embalagem, questionaram o que tinha dentro e eu mostrei.
Estava com dois celulares, um deles, bem velho que uso geralmente só para ouvir músicas, como estava fazendo quando eles me abordaram. Um deles disse enfaticamente: “por que anda com dois celulares?”. Expliquei. Não se convenceu, afinal de contas, para um policial, eu, sendo negro, de Guaianases, estando ali pra passear, só poderia estar mentindo.
Com certeza eu era um bandido em potencial. Para provar que não, fui obrigado a desbloquear os dois aparelhos e responder com quem tinham sido as minhas últimas conversas e quais fotos tinham na galeria, além das músicas que estavam ali também. Fui capaz de realizar tudo o que eles pediram, apesar do nervosismo e da ignorância deles.
Algumas pessoas com quem comentei sobre o ocorrido me disseram que os policiais estavam fazendo o trabalho deles. Justo. Eles são pagos para fazer nossa segurança e as abordagens fazem parte do cotidiano, na busca de “bandidos”, mas o que eu questiono não é a abordagem dos jovens, mas sim como é isso é realizado de forma desumana.
Quando um policial nos aborda para nos revistar, ele não parece estar querendo saber quem somos, mas confirmar o pré julgamento discriminatório, racista e classista que possui acerca da população juvenil, pobre, negra e periférica.
Guaianases é um dos bairros com maior contigente de pessoas negras da cidade. Dados da Secretaria Municipal de Promoção e Igualdade Racial indicam que a população negra está concentrada na periferia, principalmente no extremo das zonas sul e leste.
Por falta de equipamentos de lazer e cultura no meu bairro é que meus amigos combinaram de se encontrar na Avenida Paulista. Guaianases deveria ser igual o centro no sentido de opções e atividades, mas não é. No centro há muito mais teatros, cinemas e parques que na zona leste, onde moro.
De acordo com o Observatório Cidadão, enquanto a região da Consolação, onde eu estava, possui um dos maiores números de equipamentos culturais, ocupando a quinta posição dentre os 32 dos distritos paulistanos, meu bairro está zerado neste mapa cultural.
Do outro lado, quando falamos de segurança pública, os números fazem com que Guaianases esteja nas primeiras posições. São as mortes de pessoas pobres virando gráficos da violência.
Nos primeiros semestres dos últimos dois anos, a zona leste encabeçou a lista das regiões em que mais houve embates policiais com mortos, enquanto os bairros do centro não sofreram com nenhuma ação dessa natureza. Segundo o Núcleo de Estudos da Violência da USP, Guaianases ocupa a 12ª posição dentre os distritos policiais com maior índice de homicídios.
Um levantamento da Ponte Jornalismo apontou que em 2014 a zona leste de São Paulo foi a região com quase 50% de registros de mortes envolvendo policiais. Outros dados revelaram que os alvos policiais se repetem nas regiões mais marginalizadas da cidade.
Na avenida Paulista, os policiais — ali, representando o Estado — me disseram na minha cara que aquele lugar não é pra mim. Não sou parte daquele espaço da cidade. E o pior, não há diálogo com aqueles que nos matam ao invés de nos proteger.
Tem muita gente que defende as atitudes policiais no trato com os jovens das periferias, mas, de fato, nunca os ouviram a respeito dessas situações tão corriqueiras que se naturalizaram por um grupo que sempre é suspeito, inimigo da sociedade, ou melhor, “os projetos de bandido”.
Lucas Veloso é correspondente de Guaianases.