Essa sigla, USP, sempre foi muito distante de mim. Não só geograficamente pela Universidade de São Paulo estar situada na zona oeste e eu ter morado em bairros da zona norte – a infância na Vila Medeiros, e a partir da adolescência na Jova Rural. Mas, porque na época de escola, nunca fui encorajada a conhecer, a pertencer a este local.
O máximo que me era oferecido na escola foram cursos de datilografia e depois de computação. Ou o anúncio de algum cursinho pré-vestibular pago, que dava bolsas apenas aos melhores alunos. Eu nunca fiz vestibular da Fuvest – prova oficial para ingressar na unidade.
A primeira vez que pisei no “solo sagrado” da USP foi numa sexta feira, dia 25 de novembro de 2016. Tinha 33 anos quando acompanhei a jornalista Lívia Lima, do coletivo Nós, mulheres da periferia, que havia sido convidada para um debate no Seminário de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, realizado na Faculdade de Educação.
Tomei a palavra e falei para as pessoas que ali estavam que era a primeira vez na vida que eu pisava naquele lugar. Aquilo era muito significativo sobre o tipo de educação que tive.
Não conheci pessoas que estudaram na USP. Concluí o ensino médio em 2000 e, na época, não conhecia sequer pessoas que fizessem faculdade. Ainda não existiam programas de bolsa de estudos como o Prouni (Universidade para Todos), criado pelo governo federal em 2004 pela Lei nº 11.096/2005, nem o Programa Bolsa – Universidade, conhecido como Escola da Família.
Este último surgiu em 2003 por meio de um convênio entre o Governo do Estado de São Paulo e as instituições particulares de Ensino Superior, que oferecia bolsas de estudo integrais. Para isso, os estudantes se tornavam educadores voluntários nas escolas estaduais, durante todos os fins de semana até o final da graduação. Foi com esse tipo de bolsa que fiz a primeira graduação em Secretariado Executivo na Faculdade Sumaré.
O programa teve bolsistas até o ano de 2018. De acordo com o site oficial, “no momento não há previsão de novas inscrições”.
A primeira pessoa que conheci que estudava na USP era uma amiga que cursava História. Eu a conheci em 2002, aos 19 anos, no grupo de jovens da igreja católica do bairro. Lembro dela dizer que a distância até lá era tão longa que ela dormia, acordava, penteava o cabelo, dormia de novo, acordava, comia, e ainda estava no caminho.
Ela foi da época antes do surgimento da linha 4-amarela do metrô. Tempo em que um ônibus chamado Cidade Universitária, que ia para a USP, saía do bairro do Jaçanã. De uns anos para cá, ele passou a sair do bairro de Santana. O percurso era longo para estudantes, motoristas e cobradores.
Eu estudei o ensino fundamental e médio em escolas públicas. Depois, passei por duas faculdade particulares, com modalidades diferentes de bolsas de estudos. Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios), em 2017, 79,4% das instituições de ensino da região sudeste são privadas. Como as duas onde eu me graduei.
Anos depois, fiquei sabendo de um curso pago de pós-graduação dentro da USP. Me informei sobre o processo. Comprei livros, li os textos. Fui até lá fazer a prova. Me lembro de ter perguntado para pessoas conhecidas como chegar lá. E depois, perguntar sem graça ao cobrador do ônibus laranja Circular 2, qual ponto deveria descer para chegar na ECA (Escola de Comunicação e Artes). Enquanto outras pessoas dentro do ônibus tinham uma expressão de indiferença, de conhecer aquele caminho.
Entrei para o curso, e passei a frequentar aquele local quase que sagrado duas vezes por semana, no período da noite. Lembrando a sequência dos quatro pontos de ônibus: Educação, CRUSP, Brasiliana, ECA, ponto que pode ser identificado pelas fachadas iluminadas das instituições bancárias.
Em abril, tive a banca final do curso de pós-graduação de Mídia, Informação e Cultura, no Celacc (Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação), que faz parte da ECA da USP.
Quando chegou o dia da banca, chamei minha mãe e minha irmã para me acompanharem. Elas, assim como eu dois anos antes, nunca tinham pisado naquele lugar. Minha irmã me disse que, se eu tivesse comentado antes, talvez outras pessoas também tivessem se interessado em ir para ter um motivo para conhecer a USP. E eu lembrei de ter vivido essa curiosidade.
Fui para a banca com uma camiseta escrito “Periferias”. Decidi fazer uma análise sobre a Agência Mural de Jornalismo das Periferias, a partir do jornalismo emancipatório, numa sala de aula em que nenhum aluno negro chegou ao final do curso. No país, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios), em 2017, o percentual de pessoas da cor preta e parda, com 25 ou mais anos completos, que possuem o ensino superior é de 9,3%, enquanto o de pessoas brancas é de 22,9%.
Foi uma oportunidade de dar nomes e teorias a situações e experiências que vivo desde que me entendo por moradora da periferia. Conheci textos do geógrafo Milton Santos, que falavam das potências e solidariedade nos territórios periféricos. Foi uma oportunidade de entrar em contato com inseguranças referentes a minha educação, a minha escrita, a algo que diz dentro da gente o tempo todo que não somos bons o suficiente, mas mesmo assim a gente segue e não estamos sozinhos. Somos vistos como exemplos por outras pessoas.
Lembrei da minha primeira colação de grau do ensino superior em 2006, quando voltei em três ônibus, da zona sul para a zona norte, segurando um capelo, aquele chapéu com parte superior quadrada, e um porta diploma redondo de veludo. Quando pessoas, principalmente mulheres, que me viram pelo caminho, entre um terminal e outro, me deram parabéns, e disseram para mim que também queriam voltar a estudar.
Na minha conquista atual, os parabéns vieram em peso pelas redes sociais, na foto em que estou no solo sagrado da USP com minha mãe e minha irmã. Qualquer lugar que chego não estou sozinha, levo as periferias comigo.