O Projeto de Lei 185/2022, que trata do PME (Plano Municipal de Educação) da cidade de Mogi das Cruzes para o biênio 2023/2024 foi aprovado em dezembro do ano passado e, desde então, vem gerando debates entre os moradores e organizações civis da cidade.
Aprovado em uma sessão extraordinária por 13 vereadores da casa contra 5, um dos pontos que gerou repercussão foi a aprovação de uma emenda que exclui do artigo 2º, inciso 9º do PME e da meta 2.7, termos que tratam sobre o respeito à diversidade de gênero, ao desenvolvimento sustentável à igualdade racial e aos direitos humanos.
No antigo documento, o artigo 2º estabelece como diretrizes do PME a “promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental”, já no documento aprovado vigoram os termos “difusão dos princípios de equidade e do respeito à dignidade da pessoa humana”.
Já a meta 2.7 prevê como uma das estratégias de educação “dar continuidade às ações de acompanhamento e monitoramento das situações de discriminação, preconceito e violência nas escolas (…), por meio da garantia da equidade racial e de gênero, em colaboração com as famílias e com os órgãos públicos de Assistência Social, Saúde e Proteção à Infância, Adolescente e Juventude”. Neste novo documento os termos “equidade racial e de gênero” foram excluídos do texto.
O vereador JohnRoss (Podemos), autor da emenda, afirmou durante a sessão de votação que a palavra “diversidade” quando entra no texto no plano acaba fechando dentro de uma construção onde você não consegue completar o “todo” e que a palavra “gênero” acaba sendo redundante.
A vereadora Inês Paz (PSOL), 61, votou contra a emenda. “A colocação de gênero, raça e diversidade no PME é uma orientação nacional. A proposta de retirada demonstra o atraso que os vereadores e vereadoras da base do governo possuem de como fazer a desconstrução dos pré-conceitos estabelecidos na nossa sociedade machista, racista e escravista”, aponta.
Para a educadora preta, que se declara antirracista, Fernanda Dias Maciel, 37, o projeto de lei n° 185/2022 é ilegal pois vai contra algumas leis de cunho nacional, como por exemplo a Lei 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do ensino da historia da África e dos Africanos no curriculo escolar.
Segundo Fernanda, a retirada de questões intrínsecas do currículo municipal da cidade só confirma o racismo institucional e mostra o despreparo e a falta de conhecimento da História e da condição da população africana e indígena no nosso país por parte dos vereadores que aprovaram este projeto.
“O Brasil é um país diverso, é urgente e necessária uma educação antirracista nas escolas que trabalhe a promoção e valorização da cultura preta e indígena. A escola é reflexo”
Fernanda Maciel, educadora
Para a educadora, a presença do tema como obrigatoriedade é fundamental e deve ser trabalhada com as crianças desde cedo, mas que nunca teve formações sobre o tema, por exemplo. “A cultura indígena e africana é muito corporal: cantigas, músicas, as crianças aprendem brincando. Em 10 anos de rede, infelizmente nunca tivemos formações”, finaliza.
Patrícia de Souza, 48, mora no bairro de César de Souza e é coordenadora pedagógica da rede subvencionada da cidade. Para ela, a emenda é completamente contraditória. “Prega-se discursos de avanços, melhorias e crescimento e sucateia a educação como se ela não fosse fator fundamental para a evolução humana”, afirma.
A coordenadora explica que é na primeira infância que ocorre a formação do caráter da criança e trabalhar com temas sobre diversidade, por exemplo, tende a formar pessoas mais sensíveis, éticas e estruturadas para suportarem situações de conflitos.
“De uma forma mais ampla, temas como esse colaboram com o crescimento e amadurecimento de toda uma geração, o que serviria de combustível para avançar cada vez mais, até que esses problemas fossem reduzindo chegando ao ponto de não existirem mais”, pontua.
Em resposta à Agência Mural, o vereador JohnRoss defende a emenda esclarecendo que “os princípios constitucionais da equidade e do respeito da dignidade da pessoa humana são contemplativos à todas as realidades, especialmente às por si mencionadas; e que ainda, já estavam contemplados nas redações anteriores dos Planos da Educação da nossa cidade. Em síntese, ampliar o espectro da natureza principiológica da norma”, afirmou em nota.
Contraponto
Logo após a aprovação da emenda pela Câmara Municipal de Mogi das Cruzes, diversos representantes da sociedade civil se mobilizaram e assinaram um manifesto em defesa da diversidade, equidade de gênero e combate ao racismo no Plano Municipal de Educação de Mogi das Cruzes.
De acordo com o documento, “não há como combater a violência, o racismo, a misoginia e a intolerância (seja ela étnica, religiosa, geográfica ou de gênero), sem a educação de base”.
Além disso, o texto defende que a emenda desrespeita o Plano Nacional de Educação, que prevê: “Art. 8º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão elaborar seus correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas neste PNE, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei”.
Idealizado pela jornalista Jamile Santana, 34, o manifesto foi criado a partir de seu incômodo em ver uma emenda sem justificativa plausível sendo votada numa sessão extraordinária.
“Ver a estrutura e o recurso público sendo usado para promover desinformação, me deixou muito incomodada. Procurei algumas organizações e ativistas na cidade e logo eles me ajudaram a criar uma rede que pudesse endossar o manifesto” explica.
O manifesto contou com 172 assinaturas e pedia o veto do prefeito Caio Cunha (Podemos) à emenda modificativa e/ou outras ações cabíveis para garantir a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental, equidade de gênero e combate ao racismo nas escolas do município.
Após protocolado, a prefeitura informou que o manifesto não foi aceito, e que a emenda foi proposta e aprovada no âmbito do próprio Poder Legislativo, órgão ao qual se deve conferir deferência, na esteira do princípio da separação dos poderes (art. 2º da Constituição da República). Tratando-se, portanto, de decisão legítima e democrática da Casa do Povo.
De acordo com Jamile, todas as pessoas envolvidas no manifesto ficaram desapontadas com a postura da administração municipal. A jornalista de dados encara essa sinalização simbólica como um grande retrocesso para a cidade.
“Retirar essa meta e as palavras que demarcam a diversidade e os direitos humanos é um sinal de ignorância ou total desprezo às pessoas e comunidades que não fazem parte de determinado grupo”
Jamile Santana, jornalista
Procurada pela Agência Mural sobre a não aceitação do manifesto, a prefeitura de Mogi das Cruzes informou em nota que: “O Executivo respeitou a autonomia do Legislativo e não vetou a emenda modificativa – a matéria foi debatida democraticamente, votada e aprovada pela Câmara de Vereadores, Casa que representa a população de Mogi das Cruzes”.
A prefeitura ainda salientou que, mesmo que a emenda fosse vetada pelo Executivo, o texto original não seria reinserido na Lei, já que seria necessária outra discussão e redação, e “não haveria prazo para tal”.
“O Executivo entende que as alterações aprovadas não excluem as categorias mencionadas do Plano. O texto final destaca os princípios de equidade, dignidade da pessoa humana e sucesso escolar dos estudantes. Assim, da forma como foi aprovado o Plano, não haverá nenhum prejuízo pedagógico ou cultural aos estudantes da rede”, finaliza a nota.