Raquel Camargo, 56, tem paixão por dançar desde muito pequena, mas foi aos 40 que a dança do ventre passou a fazer parte de sua vida. Após perder o marido, foi na dança que ela encontrou forças para superar o luto. E fundou um espaço com atividades culturais e iniciativas destinadas à terceira idade na região onde vive, no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo.
Filha de mãe solo, Raquel cresceu no candomblé e aprendeu a dançar músicas africanas logo quando deu os primeiros passos. Desde criança até a vida adulta, ela vive no Jardim Sete de Setembro, no Grajaú.
Ela começou a fazer aulas na antiga Casa de Cultura do Grajaú, onde atualmente é o Centro Cultural Grajaú, anos depois de ter sido mãe, aos 15 anos. O primeiro desafio foi perder a timidez, já que a dança do ventre exige muita sensualidade.
“A dança afro que eu fazia era cheia de dogmas, então eu sempre dançava de cabeça baixa. Era tímida e qualquer coisa me deixava vermelha. Com a dança do ventre, comecei a me mostrar mais”, conta.
Na mesma época em que começou a fazer as aulas, ela tinha se casado pela segunda vez. Raquel afirma que era tão tímida que não deixava o próprio marido a assistir às aulas de dança.
Foi quando um golpe do destino a abalou profundamente: o companheiro, de 35 anos, foi assassinado no bairro do Rio Bonito, em Cidade Dutra, por ser ex-policial. Até hoje não se sabe quem foi o autor do crime.
“Fiquei muito abalada. Estava entrando em depressão, mas as meninas me incentivaram a ir pra aula. Às vezes na aula eu começava a chorar do nada e todo mundo parava para me acolher. Sou eternamente grata a elas. São minhas amigas até hoje”, lembra emocionada.
Por conta do luto, ela procurou ocupar a mente e abriu uma casa de shows e lanchonete chamada Espetinho, em Parelheiros, na zona sul.
Ela trabalhava no espaço organizando as atrações para shows na parte da noite e durante o dia atuava como professora de dança em comunidades próximas à região.
No Espetinho, que funcionou por dois anos, descobriu-se produtora cultural, já que era a responsável por trazer os artistas ao local, fazer a logística e divulgar os eventos. O local recebeu artistas famosos, como o Latitude 10, MC Tartaruga, DJ Samuk e o falecido Mc Zói de Gato.
Trabalho comunitário no Grajaú
Raquel formou a primeira turma nas aulas de dança do ventre no CCM (Centro de Cidadania da Mulher) de Parelheiros, em 2006. Tambémpassou mais de 10 anos dando aulas voluntárias para estudantes do Céu Vila Rubi, também na zona sul.
Os grupos de dança que ensinava estavam frequentemente em eventos promovidos pelas subprefeituras e logo o nome de Raquel se tornou conhecido na região.
As aulas, que ocorriam duas vezes por semana com três horas de duração cada, têm impacto direto na saúde e na melhora da autoestima das estudantes.
“A maioria me chama de mãe e eu as considero como a minha segunda família. Quando começou a pandemia, todo mundo ficou desesperado. A aula não é apenas atividade física, mas é uma válvula de escape”, diz.
Em 2019, Raquel dava aulas nas regiões do M’Boi Mirim, Grajaú e Santo Amaro. Juntando as três turmas, eram cerca de 600 alunas. Passou a fazer aulas online e, apesar de ter tido dificuldades para se adaptar ao formato de início, para o futuro ela pensa em fazer as aulas de maneira híbrida, no virtual e presencial.
Foi também nesse ano que fundou a Cultura da Sul, espaço onde promove outras atividades para além da dança, como cursos de violão, capoeira, aulas de libras e iniciativas destinadas à terceira idade. Para isso, ela conta com a ajuda de 100 colaboradores.Por lá, as aulas de dança do ventre são gratuitas.
Por ser candomblecista, ela conta que participou de ações comunitárias ao lado da mãe e isso reverbera em seu trabalho atual. “Cresci vendo minha mãe fazendo trabalho social. Ela é a minha guerreira. Sempre doava alimentos e roupas para os que mais precisavam”, relembra.
Na frente da ONG, existe uma grande pintura com o “R” de respeito, uma forma de pedir respeito aos frequentadores do espaço, pois todos são bem-vindos independente do gênero, orientação sexual, raça ou religião. Na porta também se encontra um coqueiro de vênus. Dentro do candomblé, a planta é o peregum, que protege de energias negativas.
O espaço da ONG é alugado, então Raquel enfrentou diversos percalços para manter o local aberto durante a pandemia. O estresse foi tamanho que ela chegou a entrar em depressão. No momento, ela está em tratamento.
“Não ligo muito para coisas, mas ligo para as pessoas. Eu lido com o ser humano desde quando me conheço por gente e sempre tive muita responsabilidade pela vida dos outros como se fosse a minha. Então isso já muda a sua forma de pensar e o seu caráter”, conclui.