Em novembro, revista Época fez o mal uso do termo “carente” ao trazer uma matéria sobre o professor Luiz Felipe Lins, que atua em uma escola pública de uma região periférica
Tarde de sexta-feira. Na rua de cima da minha casa, tem uns meninos jogando bola em um campo improvisado, enquanto a mãe de um deles é quem apita a partida. Hoje tem feira por lá também, muita gente carregando frutas para a família e até para os vizinhos, que pediram um “favorzinho”. Tem criança estudando, tem jovem na biblioteca lendo e artistas grafitando a passarela no centro do bairro. Cadê a carência?
Joguei a palavra no Google. Todos os resultados que apareceram se referiam a carência como algo emocional. Resolvi clicar no resultado que teoricamente deveria ser o mais relevante, um post com alguns motivos que fazem com que as pessoas sejam ‘carentes’. Em nenhum tópico ali encontrei o fato de morar na periferia e de ser pobre.
No dicionário Michaelis, “carente” tem dois significados: 1. Que revela falta ou carência de algo; falto, solteiro e 2. Que revela carência afetiva.
Voltei ao Google, fui na aba de imagens e ali apareceram mais gatinhos, cachorros e memes do que já recebi durante todo o tempo em que estou no grupo de família no whatsapp. Ali também, nada que me remete ao fato de ser pobre.
Tudo muda, no entanto, quando entramos no campo do jornalismo ou na aba de notícias do buscador, pois todas as vezes que a palavra “carente” apareceu era em referência a moradores pobres, moradores das periferias, pessoas como eu, meus amigos e minha família. Ou seja, a palavra em si não carrega nenhum significado social, mas frequentemente é empregada, sobretudo pelos grandes jornais e portais de notícias para tratar dos rincões das grandes cidades, principalmente.
Nas abordagens sobre os locais mais populares, o termo de carência parece palavra obrigatória a ser incluída no conteúdo. Em grande parte dos casos, o enfoque é precário, porque se limita a mostrar as precariedades destes espaços –como se não existissem outras abundâncias.
O discurso que impera é que onde vivem pessoas ‘carentes’, suas vidas são ‘carentes’, bem como suas trajetórias e suas experiências, bem como suas culturas, suas tradições e seus valores.
Pela ausência de locais públicos que fornecem acesso à internet, pois nem todos podem ter uma em suas casas, em Guaianases, temos várias lan houses. Na falta de shows, os jovens organizam seus bailes nos fins de semana. Na falta de representação, há quem crie suas próprias marcas de roupas e ali estampam os negros, os pobres e todos aqueles que costumam ficar invisíveis na cobertura tradicional.
E só pra contar um exemplo de quem acabou de chegar a Guaianases, o Mohammed e o Davi, haitianos que emigraram depois do terremoto de 2014. Eles montaram seus próprios comércios aqui para sustentar a família e ainda poder ajudar quem ficou por lá.
Cadê a carência, onde estão os carentes?
Para que diminua este fluxo noticioso distorcido e parcial de parte dos meios de comunicação, desde janeiro de 2015, em nome do Mural, sou o responsável por alertar os veículos de comunicação quando, erroneamente, adotam o termo para designar as pessoas que vivem nas bordas das cidades.
O contato é feito por meio de um e-mail, que é enviado sempre que identificamos o uso da palavra de maneira preconceituosa e ligada à pobreza, sem reflexão, apenas o chavão de sempre. E tudo isso é possível por conta da nossa rede de quase 70 correspondentes locais, além de nossos leitores, espalhada por mais de 40 bairros e mais de 10 cidades na Grande São Paulo.
Entre as dezenas de contatos feitos, uma editora do site Hypeness nos agradeceu pelo toque e imediatamente alterou o título da reportagem que trazia o termo.
Ajudar a tornar mais exata a linguagem que nós, jornalistas, usamos ao descrever a realidade que vivemos, também faz parte da missão da Agência Mural.
Com cada e-mail que envio, acredito que chega junto, nas entrelinhas, um pedido que também é das pessoas que nunca se viram representadas de fato pela imprensa que se dispôs a tratar a realidade tal como ela é, mas que acaba por distorcê-la.
Os exemplos que citei aqui são de Guaianases, – entre todos os bairros no mundo, o que mais conheço – mas eles valem para todos os outros das periferias, com suas realidades, pessoas e histórias. Disso tudo, é importante que fique a lembrança de que “carente” é um termo vago e precisa de complemento. As pessoas não são carentes por serem pobres, esse é o erro. Por exemplo, usar no texto que, certas regiões são carentes de serviços públicos, carentes de atenção do estado, carentes de escolas, dentre outras coisas, está correto. O que não está valendo é a generalização.
Os moradores das periferias estão produzindo conhecimento e experiências, e é só ter sensibilidade, empatia e um outro olhar jornalístico para perceber ali no cotidiano um contra discurso de carência. É na potencialidade das periferias que sai a resposta para os ‘carentes’ das manchetes.