“O tempo, afinal, é um rio que corre circularmente, e deságua nele próprio.” Quando criança adorava sentar perto de minha mãe, minhas tias e minha avó para ouvir as histórias que tanto as fazia rir. Eram histórias da época em que eram crianças, lá em Lençóis, no estado da Bahia, coração da Chapada Diamantina.
Quase sempre nos encontros da família, fosse no Jardim Fontalis, na zona norte de São Paulo, ou em Lençóis, as histórias eram as mesmas e as risadas sempre estavam lá. Elas nunca cansam de contar as histórias de nossa família. Contavam e representavam, com caretas, com as “brabezas” e risadas.
O tempo correu e de tanto escutá-las passei a contar e representar as mesmas histórias, primos e primas mais jovens também. Cada narrativa com uma cor, um exagero, um gracejo diferente, mas as histórias são as mesmas.
“Pé de mamão não dá goiaba”
De tanto brincar de contar histórias me tornei ator, fui representar outras tantas, de tantas outras pessoas e famílias.Me tornei jornalista, queria contar, representar e dar vozes às narrativas que me atravessavam.
“Quem é que sabe de contar histórias?”
O passo seguinte foi escrever minhas próprias histórias, nascidas de minha imaginação, semeadas por minha ancestralidade e nutrida por escuta e leituras. Publiquei o livro infantojuvenil “Vamos Nessa” em 2020, ao mesmo tempo que começava a escrever “Quilombo MemORÍa”.
“Quilombo” é a primeira peça que assino a dramaturgia sozinho, é a obra que trago tudo que me forma enquanto cidadão preto, periférico, comunicador e artista: estudos sobre cultura afro-brasileira, comunicação, estruturas sociais e, principalmente, as histórias de minha família e de tantas outras que escutei pelo rio que corre em minha vida. Ancestralidades!
Dona Glória e o neto João estão confinados durante a pandemia de Covid-19 no apartamento dele. São ricos, correm poucos riscos e todo o tempo que têm utilizam para contar histórias um ao outro. Dona Glória demonstra sinais de esquecimento da própria trajetória e João decide que vai ajudá-la a se recordar da própria história e das histórias que ela adorava contar quando ainda era criança.
É o novo que alimenta o antigo que alimentou o novo. É circular, é fluído, “não há começo, nem fim, há continuidade”.
“Quilombo MemORÍa” está indicada à 34ª edição do Prêmio Shell de dramaturgia em São Paulo. A cerimônia de premiação será realizada no primeiro semestre de 2024, ainda sem data e local, um dos prêmios mais importantes do teatro brasileiro em uma categoria de muito prestígio: dramaturgia.
Ser dramaturgo, de início, foi uma estratégia de sobrevivência dentro da minha primeira profissão, ator. Não havia papéis para um preto de pele clara, periférico e pouco conhecido do público em geral. Portanto, resolvi contar as minhas histórias, as que vivi, ouvi e li, as que aprendi com minha avó, mãe e tias (a benção).
Afinal, quem contará nossas histórias se não nós?
Estarei lá no dia da premiação, cercado pelos meus, ciente da minha chegada, carregado pelos meus ancestrais e meus orixás, não ando sozinho. Sei o que represento e sigo aprendendo como representar. Nossos passos vêm de longe e a caminhada ainda é longa.
“O ouvido é quem melhor ensina”
Novas histórias sempre virão, novas inspirações também, apuro os ouvidos e preparo os dedos para o teclado. Sou contador de histórias e delas vivo, me sentindo privilegiado por ser o sonho dos meus que ficaram pelo caminho. Agradeço aos deuses e deusas por cada etapa alcançada, abraço e escuto minha ancestralidade.
“Cada história é pra se contar”.
*Esse texto contém trechos da peça “Quilombo MemORÍa”, indicada ao 34ª Prêmio Shell de teatro.