A pandemia do novo coronavírus calou, temporariamente, o samba que fez da Casa de Pedra um ponto de referência na Fazenda Garcia, bairro da região central de Salvador. O espaço, que reunia cerca de 200 pessoas em uma noite de samba, entre as quintas e domingos, fez história e passa por adaptações, sem previsão de reabertura.
“Nós não imaginávamos que ficaríamos mais de oito meses com os portões fechados. Não tínhamos condições de manter o evento da forma que era. Afinal, o samba tem contato físico; não tem para onde correr. Fomos obrigados a nos reinventar para nos manter”, conta Everton Araújo, 40, gerente da Casa.
Para movimentar o caixa e garantir a sobrevivência familiar, o administrador transformou a casa de samba em um depósito de bebidas temporário, o “Depósito das Pedras”. Dois colaboradores, membros da família, foram afastados e passaram a receber o auxílio emergencial do governo.
Araújo afirma que com o decreto municipal que permitia o funcionamento de locais públicos, como bares e restaurantes, o espaço se preparava para retomar de outra forma até o fim deste mês. Contudo, com o aumento de casos de Covid-19 na cidade nos últimos dias, e a possibilidade de novas restrições, não há mais uma data prevista de reabertura.
“Vamos tentar nos adequar para atender as pessoas da melhor forma. Estamos regularizando a documentação para voltar a funcionar de uma forma segura para todos. Em respeito aos nossos amigos e clientes”, diz Araújo.
Sócio da Casa de Pedra, o cabeleireiro João Fraga, 56, é tio do gerente e conta ter descoberto a importância do espaço para o bairro ao participar de um evento na Itália.
“Um jovem me perguntou onde eu morava em Salvador e quando falei que era do Garcia, ele foi logo falando sobre a Casa de Pedra, elogiou e disse que era um local muito famoso”, conta.
João diz que ficou surpreso com a reação. “Não esperava essa proporção. Para o bairro é uma referência muito boa, pois fortalecemos também o comércio local e a identidade das pessoas. Demoramos para entender essa importância; hoje, eu entendo que é como um patrimônio do bairro”.
Com pedras grandes decorando a fachada e paredes internas, o estabelecimento surgiu na década de 90, sem pretensões comerciais. Era apenas a casa para reunião de amigos e familiares de Julinda Maria Araújo da Silva, a Dona Julinda, irmã de João Fraga, falecida em 2013.
Apaixonada por samba, ela reunia a vizinhança nas barracas que existiam no Largo, onde atualmente fica o final da linha de ônibus da Fazenda Garcia. Araújo, filho de Dona Julinda e sobrinho de Fraga, conta que tempo depois a mãe acabou trazendo o samba para dentro do lar.
“Meu tio foi trabalhar na Itália e, de lá, a ajudou a comprar uma casa. Depois, todo fim de semana era a mesma coisa. Ela arrastava os móveis e convidava os amigos”, relembra.
Fraga diz que a ideia de criar um espaço um pouco maior na residência foi uma forma de homenagear a irmã, sem imaginar a repercussão que viria. “De início seria um espaço para ela receber os amigos e familiares. Depois, passamos a cobrar um real pela entrada, só para a manutenção da casa. Ela cozinhava e quem vinha trazia a cerveja; faziam aquele samba só no gogó”, conta.
Clientela envolvida e saudosa
Apesar da identidade visual, constituída por grandes pedras, ser o cartão de visitas, o gerente filho de Julinda afirma que o nome do espaço não foi estratégico.
“Como meu tio queria uma estética diferente da que tínhamos nas casas da época, mandou minha mãe comprar essas pedras para colocar na fachada. Um dia, o cantor de uma banda pediu para abrirem o portão da casa de pedra. Ali, tudo fez sentido. Já estava na boca das pessoas”, conta.
O sambista responsável é o aposentado Josué Nascimento, 66, mais conhecido como Boy, vocalista e compositor da banda Pintura na Tela. O grupo foi um dos primeiros a se apresentar no estabelecimento.
“Grandes bandas tocaram nesse espaço. Então, nós músicos, respeitamos muito o chão desse lugar. No início, Julinda escolhia a dedo as bandas, com muita exigência, ela tinha um ouvido afiado. Eu sou muito grato por ter passado por lá.”
Boy faz parte de uma das classes que mais sofreram com a pandemia, os artistas. Mesmo aposentado, o músico afirma ser um período difícil para quem vive das artes.
“Ninguém imaginava que passaríamos por um momento como esse. Infelizmente, há muitos colegas que passaram apertos por conta da falta dos eventos. E por mais esperançoso que eu esteja, não consigo pensar quando esses eventos retornarão”, desabafa.
A freguesia também está com saudades da Casa de Pedra. Para o marinheiro Edmilson Cardoso, 42, um dos primeiros clientes, o espaço vai além de uma referência apenas do bairro Garcia.
“Não tem como falar de samba em Salvador e não lembrar da Casa de Pedra. Não só pela música, mas também pelos amigos que a gente acaba fazendo ali. É um espaço de encontros e reencontros”, diz.
Além de considerar a música boa, ele tece também elogios ao atendimento. “O cliente é tratado como um parceiro, a gente consegue sentir isso desde a hora que pede a cerveja, que para mim, é a mais gelada da cidade. Neste momento não tem como não sentirmos saudades”, declara Cardoso.
Já a empresária Mônica Conceição, 39, destaca a musicalidade como um dos pontos altos da casa. “Apesar de ser um local pequeno para a quantidade de pessoas que frequentam, o samba de mesa é uma delícia e a galera que vai sempre se reencontra. Tem tempo que não consigo curtir; matei a saudade em janeiro deste ano. Quem gosta de um bom samba sabe que vai encontrar no final de linha do Garcia”, recomenda.