Desde 9 de outubro, moradores da Ocupação Santa Cruz, em Pirapora do Bom Jesus, Grande São Paulo, estão apreensivos: eles receberam uma notificação da Justiça informando que terão que deixar suas casas e não têm para onde ir. Há 12 anos, 400 pessoas ocupam um condomínio abandonado, palco de uma disputa judicial entre os proprietários da área e movimentos populares do município mais pobre da região metropolitana da capital paulista.
Pelo menos 100 famílias residem na ocupação, incluindo idosos, doentes acamados e mães solos que não tem outro local para viverem com seus filhos. Esse é o caso da motorista de aplicativo Jaqueline Taís Palmieri Genésio, 42, que mora com as duas filhas de 10 e 3 anos. Ela não tem condições de pagar aluguel.
“Não consigo trabalhar o dia inteiro para pegá-las na escola e garantir os cuidados que precisam. Não confio em deixar [as meninas] com outras pessoas nem sozinhas, pois tenho medo de que aconteça algo ou que alguém chame o Conselho Tutelar. Eu trabalho para me manter e pagar algumas dívidas, não posso tirar da boca das minhas filhas”, lamenta a motorista.
A reintegração de posse estava prevista para o próximo domingo, 10 de novembro. A líder da ocupação, Jaqueline da Silva Souza, 48, protocolou um pedido de clemência no Fórum de Santana de Parnaíba, cidade vizinha, que responde por Pirapora.
Na última semana, ela recebeu uma notificação de que, pela complexidade do caso, ele foi encaminhado para o Fórum de São Paulo. Os moradores seguem com a certeza que terão que deixar suas casas, porém sem data definida e sem qualquer indicativo de para onde irão.
Medo e preocupação
A diarista Adriana Barbosa, 47, chegou logo no início da ocupação, quando tinha acabado de ficar desempregada. As dificuldades financeiras não permitiram alugar, muito menos comprar um imóvel. Com a ordem de reintegração, ela não consegue imaginar onde irá morar e pensa nas outras famílias em situação de vulnerabilidade.”Se a gente tiver que sair vai ser desesperador para todo mundo”, lamenta.
Antes da chegada das famílias, o Condomínio Santa Cruz, onde foi constituída a ocupação, estava abandonado e sem condições de moradia. O imóvel era uma promessa de habitação popular do prefeito da época, Raul Bueno (PSDB na época, atualmente no Republicanos).
Porém o projeto foi embargado porque havia ocupado uma área privada e se aproximado muito da nascente de um rio, o que é um impeditivo pela legislação ambiental local. Pouco tempo depois da chegada das famílias, o local foi leiloado pela Caixa Econômica Federal e um grupo de advogados adquiriu as unidades.
Nós cuidamos do lugar quando ele tava abandonado. Nossa ideia sempre foi comprar. No início eu podia negociar e cheguei a ser aprovada pela Caixa, mas não consegui pagar a entrada e a documentação
Adriana Barbosa, diarista
A situação se repete na maioria dos 112 apartamentos da ocupação. “Hoje muitas famílias, inclusive eu, temos dívida. Isso dificulta negociações com a Caixa”, lamenta a diarista.
Reintegração de posse
Em fevereiro de 2023 foi expedido pelo Foro de Santana de Parnaíba, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a chamada “imissão de posse” do condomínio em nome dos proprietários. Este recurso jurídico garante a alguém a posse de um imóvel, quando há título de propriedade sobre ele.
Imissão de posse tem como finalidade transferir a posse do imóvel ao vencedor do processo, já a reintegração tem objetivo de promover a recuperação do bem ao vencedor do processo.
Desde então, as famílias e os advogados representantes dos donos do terreno têm tentado negociações, sem sucesso. O caso acabou sendo encaminhado pela justiça paulista para Superior Tribunal de Justiça, que em 18 de julho deu parecer favorável aos donos da propriedade.
A notificação judicial de desocupação chegou para a líder da ocupação Jaqueline da Silva Souza em 3 de outubro, com a primeira data de 10 de novembro para as famílias deixarem as residências. No caso de não cumprimento, seria feito o processo de reintegração de posse.
As famílias tinham a expectativa de ter mais tempo para uma nova negociação direta com os donos. “Pensamos, por exemplo, em criar uma cooperativa ou associação para juntar dinheiro e pagar mensalmente uma parcela, com rateio do pessoal, tipo um fundo de caixa. Mas para fazer associação levaria pelo menos três meses”, lamenta Jaqueline, que está à frente das famílias há 8 anos.
Qual a responsabilidade da prefeitura?
Os moradores da ocupação tinham expectativa de apoio da prefeitura, tanto para a mediação das negociações quanto para a viabilização de um plano para o caso de desapropriação.
“Acho que teria que ter um respaldo [para transformar o local] em CDHU, para que o valor [dos apartamentos] saísse mais baixo”, aponta a motorista de aplicativo Jaqueline.
O cientista social e pesquisador do Centro de Estudos Periféricos Jhonatan Souto, 25, concorda. Ele defende que a prefeitura precisa intervir em situações como essa – apesar do direito das famílias de recorrer com um advogado via Defensoria Pública.
É papel do poder público, segundo o especialista, providenciar moradia popular para as famílias ou um aluguel social no caso da desapropriação, até que haja a um imóvel para abrigá-las definitivamente. Além disso, a Lei 6.969 garante estabilidade a quem esteja ocupando uma propriedade há pelo menos 10 anos, com residência no local.
A Agência Mural entrou em contato com a prefeitura de Pirapora do Bom Jesus para questionar quais medidas serão tomadas caso a reintegração de posse se confirme e quais as políticas de habitação previstas para os moradores do Condomínio Santa Cruz. Não foi encaminhada resposta até o fechamento da reportagem.
“A partir do momento que a prefeitura identifica que um imóvel não está cumprindo sua função social e que o IPTU não está em conformidade com a lei, aquela ocupação é legítima. As pessoas estão lá há mais de 12 anos, já possuem direitos sobre aquele imóvel. A lei está favorável às elas e a prefeitura pode utilizar disso para fazer a desapropriação do proprietário e a regularização fundiária para as famílias”, exemplifica Souto.
Na prática, a aplicação da lei acaba encontrando barreiras, sobretudo em interesses políticos e econômicos, com a elevada especulação imobiliária das cidades da Grande São Paulo.
“Historicamente, as periferias foram frutos de ocupação, com pessoas pretas e pobres empurradas para as margens pela gentrificação”, contextualiza Souto. “Na maioria das vezes não se tem a vontade política e jurídica [para ir contra] o proprietário, em especial se ele detém poder econômico e influência”, reforça o especialista, que integra o coletivo Juventude Fogo no Pavio do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World.