Eu venho vindo, chegando agora,
Vim visitar meu Bom Jesus de Pirapora”.
O trecho iniciado por João Mário Teixeira Braga Machado, 33, dá início ao samba de roda de Pirapora do Bom Jesus, na Grande São Paulo. João é músico, pesquisador e uma referência sobre a história local e da cultura popular da região. Ele vive o samba desde os 3 anos de idade, quando o pai o levou para acompanhar os desfiles em um clube de Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo.
Dali, participou do Grito da Noite, nas noites de carnaval parnaibana, e depois conheceu Pirapora do Bom Jesus, município a 50 km da capital que se consolidou como o Berço do Samba.
O município de 20 mil habitantes e quase 300 anos de história era um bairro de Santana de Parnaíba e recebia romeiros de todo o estado de São Paulo. Estes fazendeiros traziam os escravos, que ali fariam perto da igreja eventos como a umbigada e o samba de roda. “Era natural que os donos das fazendas iam para a igreja e levavam seus escravos. Assim, começou o batuque”, conta João.
O Samba de Roda de Pirapora é realizado na Casa de Samba, na região central. O evento celebra também o aniversário da cidade e recebe sambistas de diversas regiões. “A gente chama de o berço do samba de São Paulo, não porque nasceu aqui, mas porque acolhia esses grupos”.
Em 2 de dezembro foi comemorado o Dia Nacional do Samba. A história do ritmo tem características próprias em São Paulo, onde a tradição foi mantida após a abolição da escravatura e a liberação daqueles que estavam nas fazendas de café. O samba que servia para unir pessoas traficadas de diferentes regiões da África era também um momento de protagonismo.
“O negro escravizado que sofria tanto, o ano todo, o cortador de cana, que corta cana o ano todo, por que ele quer fazer maracatu? Por que esse escravizado que sofre tanto quer fazer samba de bumbo?”, explica João. “É justamente porque naquele momento é pra colocar ele de pé. Naquele momento, ele pode ser quem quiser. Pode ser rei, ser rainha. É o zabumbeiro, é o dono do samba”.
Boa parte destes cativos estavam nas fazendas de café do Vale do Paraíba ou do Oeste Paulista, além daqueles que foram escravizados na própria região. Em Santana de Parnaíba, dos 4 mil moradores em 1836, cerca de 1.296 (30%) eram escravos. A realidade muda perto da abolição, quando havia 170 cativos. Porém, as regiões das fazendas de café ainda contavam com 60 mil negros em trabalhos forçados no final dos anos 1880, segundo a Fundação Seade (Sistema de Dados do Estado de São Paulo).
Foram os filhos dessa geração que lideraram o samba e, após a abolição, viriam para a capital e para as primeiras periferias da região metropolitana.
SETE GRUPOS
Atualmente, há sete grupos tradicionais que transmitem a tradição do samba rural paulista. Além do Samba de Roda de Pirapora, há o Samba do Cururuquara e do Henrique Preto (Grito da Noite), em Santana de Parnaíba.
Ainda na Grande São Paulo, há o Samba de Lenço de Mauá. No interior, o Samba da Dona Aurora, em Vinhedo, o Samba Caipira Filhos de Quadra (município vizinho de Tatuí) e o Samba de Lenço de Piracicaba.
Essas tradições também se vinculam ao estilo que começa a nascer na capital. “Foi aí também que deu origem ao samba urbano de São Paulo”, diz João. Um dos pontos em que nasce o estilo é a Barra Funda, na zona oeste da cidade. Estava ali o Largo da Banana, onde negros desempregados trabalhavam carregando frutas.
“Cada um vindo com sua influência do samba rural, do jongo, do batuque e no Largo da Banana foi onde se encontraram. Surgiu a primeira roda do samba urbano de São Paulo”, comenta João, que critica o fato de não haver nenhum ponto sobre isso na região. “É o memorial da América Latina e não tem um memorial dos negros paulistas, não tem uma placa contando essa história”.
Ele também fala o mesmo ao citar o poder público e a dificuldade de manter a tradição em cidades como Pirapora.
“A gente tem que ficar todo ano provando que o Seu Carmelino com 97 anos é um mestre e que merece ter um subsídio mínimo pra viver. Preferem transformar o samba num produto e comercializar achando que estão valorizando”.Ele cita Maria Esther que morreu em 2017 aos 93 anos de pneumonia. “Tem que valorizar mais as pessoas”.
Em 2018, foi a primeira vez que a festa de Pirapora não teve a presença dela, considerada embaixadora do samba paulista e que mantinha atuação até os últimos momentos de vida. Maria participou da fundação de escolas de samba da capital, como a Lavapés, e ajudou na consolidação do samba na cidade.
Mesmo com mais de 90 anos, ela mantinha o ritmo. “Quando não vou, não tem graça”. Em uma de suas últimas entrevistas, ela relembrou que a família, em especial o pai, não aceitava a ideia dela dançar. “Seu Sebastião, deixa ela dançar, vai ver que ela quer aprender a dançar”, pediu uma mulher. Ela não parou mais.
“Foi essa gente preto que me ensinou a dançar”, dizia e deixava claro. “O meu samba chama qualquer um para dançar”.
Para João, a tradição segue sendo mantida, apesar das dificuldades em mostrar a importância dela. “Éa resistência, porque você vai contra a ideia do sistema”, diz.”A cultura popular te ensina a estar 100% presente naquilo. É uma ligação com o sagrado. Quando estou tocando bumbo, não penso na mão que está doendo, no celular que vai tocar, na novela que vai passar, em alguém que vai me chamar. Ali, estou 100% presente”.
Paulo Talarico é correspondente de Osasco
paulo@agenciamural.org.br
Paula Rodrigues é correspondente da Vila Albertina
paularodrigues@agenciamural.org.br
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