Durante o BBB (Big Brother Brasil) deste ano, a psicóloga Sarah Aline, uma das participantes do programa, chamou a atenção por uma fala que recebeu de outro concorrente.
“Ouvi do Fred que ele não conseguia prestar atenção no que eu estava falando, porque o meu ‘olhar de raiva’. Tipo: “A Sarinha bondosa não existe, essa é a Sarah [má]”, relatou. Esse tipo de situação está longe de ser um fato isolado.
A visualização da pessoa negra como raivosa e agressiva é uma queixa frequente para alguns dos pacientes que chegam até o consultório da Maria Célia Malaquias, 68, moradora do Butantã, zona oeste de São Paulo e autora do livro “Psicodrama e Relações Étnico-Raciais: Diálogos e Reflexões”.
Ela explica que o estereótipo é racista, pois visa o silenciamento da população negra, em especial as mulheres. É quando reações legítimas contra a violência racista são nomeadas como raivosas e agressivas.
A intensidade das respostas são proporcionais aos ataques sofridos e culpabilizar as vítimas é uma das estratégias do racismo estrutural, defende a escritora.
A fim de debater todas as questões vivenciadas pela população negra, a psicóloga criou o primeiro grupo de interlocução e acolhimento em 1988. “Eu, como mulher preta, percebi a necessidade de ter uma troca entre os meus pares”, relembra.
“Os participantes puderam ter um espaço seguro de reaproximação dos afetos positivos entre pessoas negras, de modo a reafirmar a sua negritude. Na época, sem a internet para divulgar o grupo de apoio, contei com a repercussão do boca a boca para alcançar o público”, lembra Maria Célia.
Na atualidade, ela remodelou a iniciativa e criou um grupo de estudo sobre psicodrama e relações raciais – uma abordagem de terapia que usa o teatro para diagnosticar e tratar questões de natureza psíquica.
Os encontros são realizados mensalmente de forma online por profissionais das áreas da saúde, educação, psicodramatistas, alunos em formação de Psicodrama e demais pessoas interessadas no tema.
“O fato de ser online possibilita a participação de pessoas de várias regiões do Brasil, tais como: norte, nordeste, sul, sudeste e centro oeste. É uma forma de aprender, aproximar e falar sobre as relações raciais”, pontua Maria Célia.
Para participar, basta entrar em contato pelo Instragram @malaquiasmariacelia ou pelo e-mail: mcmalaquias@uol.com.br
Com 41 anos de experiência em clinicar, a psicóloga conta que recebe muitos pacientes pela identificação de raça com a profissional e até mesmo pessoas brancas que estão em processo de letramento racial.
“As queixas são variadas. Desde os pacientes que tiveram as dores minimizadas ou desconsideradas e acabaram sendo vítimas do preconceito em um ambiente que deveria acolhê-las. Também tem os casais inter-raciais que veem o racismo estrutural interferir na sua afetividade”, diz a psicóloga.
Ao longo da jornada acadêmica, a profissional reforça a importância da inserção da temática étnico-racial na graduação de psicologia. É importante que profissionais negros e brancos estejam preparados para o cuidado com a saúde mental desse público.
“Raramente são estudados profissionais negros dentro das universidades. Percebo que quando se fala de Neusa Santos, por exemplo, autora do livro Tornar-se Negro (Graal, 1983), é porque alunos negros trazem à tona”
Maria Célia, psicóloga
Diante de uma diferença de 38 anos de trajetória, a psicóloga Aline Cardoso, 30, moradora de Campo Limpo, zona sul de São Paulo, analisa que o cenário pouco mudou. Marcada pelo dominador da raça, a profissional se formou em 2015, sem a lei de cotas.
“Quando entrei na universidade, não havia bolsas de estudos destinadas à população negra. Os meus amigos negros também viam e sentiam o racismo estrutural dentro da própria esfera acadêmica e de trabalho, mas as discussões ficavam apenas entre nós.”
A psicóloga acrescenta: “no curso de psicologia, não tem uma abordagem da saúde mental para as relações étnicos-raciais. É preciso ter um preparo para isso. Não basta ser negro, é preciso ser anti-racista! E entender toda a esfera social”.
Para Aline, o racismo pode se apresentar, infelizmente, no comportamento de outro profissional quando diminui ou até mesmo minimiza o sofrimento do paciente.
“Ignora as estruturas sociais e raciais e tende a atribuir os sofrimentos emocionais dos pacientes a questões individuais. Assim, desconsideram que a situação é similar à vida de outras pessoas da mesma raça”, finaliza Aline.