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‘Sempre terão negros e mulheres nos meus clipes’, afirma Rincon Sapiência

Por: Giacomo Vicenzo e Rômulo Cabrera

O olhar sério, a fala calma e o jeito introvertido contrastam com a presença de palco conhecida pelo público do músico Rincon Sapiência. Em um apartamento da Cohab 1, no distrito de Artur Alvim, na zona leste de São Paulo, ele aguarda a reportagem.

O imóvel é de Nunah Oliveira, 30, percussionista que passou a integrar a banda recentemente, mas que o conhecia desde que Danilo Ambrosio (seu nome real) era o mais comumente atribuído a ele pelo bairro.

Mesmo não morando mais no bairro [hoje vive na Bela Vista, região central], o tempo de infância, adolescência e parte da vida adulta faz com que ele se sinta à vontade pelas ruas. Rincon morou durante anos com os pais e três irmãos em frente à Praça do Morcegão [Dilva Gomes Martins], onde acontecia de tudo: festa de Cosme e Damião, jogo de truco, roda de samba e batizado da capoeira.

“Me fez conectar com a rua”, lembra. “Era meu quintal. Convivia com a rapaziada do skate, ouvia muito o som deles, rock, Charlie Brown, Rappa. E de fim de semana era a roda de samba”, lembra.

Foi na Praça do Morcegão também que ele subiu ao palco pela primeira vez vencendo a timidez que demonstra até hoje. “Subi para cantar um rap que fiz inspirado na letra da música ‘Us mano e as mina’ do rapper Xis. Sempre rolava uns eventos na praça. Sempre pedia para cantar torcendo para não dar certo, porque morria de vergonha. Nesse dia eu subi e cantei. Os camaradas disseram que estava bom, mas não estava não”, diz Rincon aos risos.

O músico Rodrigo Carneiro, 33, que cresceu com o amigo Rincon na Cohab 1, acredita que o artista é um bom exemplo para o bairro. “Ele tem poder de fala, além de ser engajado. Não é só discurso, é transformação”, pontua.

O encontro entre eles na praça é acompanhado também pela percussionista Nunah, para improvisar a interpretação da música “Linhas de soco”.

SANGUE DE REI: O MANICONGO EM SEU REINO

Conhecido também como manicongo, como costuma dizer em músicas e apresentações, o pseudônimo artístico inspirado nos governantes do antigo reino do Congo, onde hoje está a República do Congo e Angola.

“Vi em uma música do NAS [rapper e autor norte-americano] que éramos reis e rainhas no continente africano. A partir daí acreditei que poderia ser um descendente direto e adotei esse nome”, explica Rincon.

Cantor fala sobre a importância da periferia em sua trajetória (Rômulo Cabrera/Agência Mural)

O cantor tem como divisor de águas na carreira a ida para o continente africano. Ele se apresentou em festivais do Senegal e na Mauritânia. “Foi lá [África] que eu criei esse imaginário ao contrário, vendo as pessoas de diversos lugares do mundo se identificando com a minha música sem entender o que eu estava dizendo”, lembra. “Diria que há um novo Rincon pós-viagem, me fez ter uma visão muito mais global e isso apareceu no meu trabalho”, revela.

O álbum “Galanga Livre”, lhe rendeu o Prêmio de Artista Revelação em 2017, além de trazer elogios de grandes personalidades que inspiraram o rapper como Xis, Mano Brown e Black Alien. “Quando eu ganhei, quis falar de tudo. Da produção, da quebrada, de todo mundo que participou”, lembra.

A infância foi apertada financeiramente, mas os três irmãos sempre tiveram o necessário. Rincon é o mais novo dos irmãos, com os quais dividiu o pequeno quarto dos apartamentos da Cohab por um longo tempo. “Três negão dentro de um quarto, pensa? Era difícil, depois eu fui conhecer outros lugares. Outras realidades”, comenta.

Nunah Oliveira, Rodrigo Carneiro e Rincon Sapiência (Rômulo Cabrera/Agência Mural)

Por influência do irmão mais velho, ele começou a se interessar pelo hip-hop. “Foi o cara que deixou minha casa mais descolada. Via ele e os amigos ouvindo músicas, clipes e a minha referência um dia era ser igual a eles. Foi assim que se criou o primeiro deslumbre, esse gosto”, lembra nostálgico.

A primeira letra que fez de fato ficou por conta de um trabalho de escola em 1997 e falava sobre a dengue inspirada na música “Gamei” do Exaltasamba. A fluência entre os ritmos é uma das característica do artista que chama o seu estilo musical de ‘afro rap’ e traz as diversas influências de vida para o campo artístico.

Um dos desejos de Rincon é que o bairro de criação e outras periferias também possam alcançar mais referências. O artista planeja organizar um show gratuito na Praça do Morcegão na Cohab1 [ainda sem nenhuma data definida].

“NO CORRE DO PLACO”

Entre os irmãos, Rincon foi sempre o que teve mais dificuldades para encontrar trabalho. Antes da música, o sonho era ser jogador de futebol. Rincon era volante na várzea, e chegou a jogar no time da Portuguesa antes de seguir de vez na carreira do rap. O batismo das ruas trouxe o apelido artístico. Um frequentador de um bar da região o achava parecido com o jogador colombiano Freddy Rincón, ídolo de Palmeiras e Corinthians nos anos 1990.

No final deixou o futebol e optou pela música. Para se manter, ele fazia bicos pelo bairro como pintar muros, panfletar pelo bairro. O trabalho em que ficou mais tempo foi como telemarketing, em uma empresa no centro da cidade.

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“Eu entrei no telemarketing para comprar uma mesa de som, uma placa de som e um microfone. A parceira com que eu estava na época emprestou o cartão de crédito e eu pude assumir uma dívida e comprar os equipamentos para fazer minhas produções “, lembra.

Rincon dividiu as baías com uma das atuais percussionistas da banda, Nunah Oliveira, 30, que também vivia na Cohab 1. “Chegamos a tocar juntos antes. Mas sempre tive medo de seguir na carreira da música, era complicada”, lembra Nunah.

Os amigos ficaram um tempo afastados até que Rincon decidiu entrar em contato com a percussionista. “O percussionista da minha banda pediu para sair no começo do ano. Lembrei da Nunah e me disseram que faltavam mulheres na banda. Eu entrei na reflexão que eu tinha que empregar as pessoas que moram no bairro em que nasci. Sempre terão negros e mulheres nos meus clipes e equipe”, explica.

O artista ganhou o primeiro prêmio em 2017 (Rômulo Cabrera/Agência Mural)

O trabalho de telemarketing tinha apenas uma folga semanal, mas ele enxerga como uma das profissões com maior diversidade e menos preconceito. “É um lugar que você verá mais pessoas negras, gays, travestis, tatuadas. Porque você não vende sua imagem diretamente, apenas a sua voz”, comenta.

Por mais de dois anos a voz grave de Rincon atendeu clientes via telefone. Quando o clipe “Elegância” chegou nas paradas de sucesso, ele decidiu se dedicar inteiramente à carreira artística. “Saquei que se eu fizesse um ou dois shows por mês, eu tiraria a mesma merreca que recebia no telemarketing e ainda teria mais tempo para ficar em casa com meu filho, fazer uma feira”, explica.

“OS PRETO É CHAVE. ABRAM OS PORTÕES”

Se no emprego de atendimento telefônico Rincon viu as vozes de pessoas sendo vendidas desagregadas de seus corpos, ‘vingou-se’ nos clipes. As produções sempre retratam mulheres, negros e pessoas que fogem aos padrões tradicionais de beleza.

“Na minha adolescência eu não tinha confiança para dizer que era um cara bonito. E também não tinha referências negras no cenário pop como hoje. O que estava em alta eram os Backstreetboys, os Hanson e eu não me via nisso. Quem estava no comando eram pessoas brancas e naturalmente essa era a reprodução deles”, lembra.

Na Cohab 1, Rincon vivenciou e sentiu o racismo na pele. “Naquela época tinha o pessoal que chamava de macaco mesmo, né?”, diz. Recorda-se também de uma briga que marcou a consciência racial herdada principalmente dos pais.

“Saiu uma confusão e acusaram que eu e um amigo estávamos fazendo barulho no portão do prédio em que morávamos. Não era a gente. Uma moradora saiu, olhou para gente e gritou: tinha que ser preto mesmo”, lamenta.

Antes da música, Rincon trabalhou com telemarketing (Rômulo Cabrera/Agência Mural)

Os pais de Rincon fizeram questão de passar a limpo a atitude racista. “Eles não brigaram nem nada, foram na educação. E sempre diziam para gente. O mundo é racista e as pessoas vão querer achar um pé [motivo] para demonstrar isso”, diz.

Com as condições financeiras diferentes proporcionadas pela música, ele pode vivenciar novas experiências, mas afirma que o racismo ainda o acompanha em casos cotidianos.

“Você entra numa loja que tem uma série de atendentes, eles te olham e nenhum deles se dispõem a te atender. Acho que hoje em dia várias pessoas estão repensando suas atitudes, seus preconceitos, mas ainda vejo a reprodução desse tipo de coisa acontecer”, pontua.

DESCONSTRUÇÃO

“Eu tive toda a formação de fazer reproduções machistas. Jogava muita bola, tinha muita briga. Quando rolava falta dizia – futebol é para homem”, lembra.

Ele diz acreditar que se vive em um momento que se cobra essa postura de desconstrução de coisas relacionadas a gênero, cor da pele e orientação sexual. “Estou dentro desse ambiente e estou aberto a ouvir. Muitas vezes discordamos das pessoas porque não conseguimos ter as perspectivas delas sobre o assunto”, explica.

O artista afirma ver um processo de mudança do mundo e uma sociedade mais aberta às discussões, apesar do preconceito e a violência contra negros, gays e transexuais.

“Não sou desconstruído porque primeiro você reconhece o detalhe e depois você leva isso para fora da sua conduta, não é um estalo de dedos que te faz ser uma outra pessoa. Mas desconstruir esses valores antigos de masculinidade é saudável e eu estou aderindo a alguns desses valores”, comenta.

Giacomo Vicenzo é correspondente de Cidade Tiradentes
giacomovicenzo@agenciamural.org.br

Rômulo Cabrera é correspondente de Suzano
romulocabrera@agenciamural.org.br

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