No imaginário popular, a imagem dos povos ciganos pode estar atrelada a roupas coloridas, festas e uma aura de mistério, com espírito viajante. Mas, para além dos estereótipos, existe uma história de resistência e pertencimento que atravessa séculos, inclusive nas periferias da capital paulista e da Grande São Paulo.
Em universidades, repartições públicas, consultórios médicos ou em acampamentos mais tradicionais, ciganos das quebradas lutam por direitos básicos, contra o preconceito e por reconhecimento – em um país que ainda falha em reconhecer a diversidade deste povo.
Magda à direita e Viviane à esquerda, em acampamento cigano no Itaim Paulista @Léu Britto/ Agência Mural
É nesse embate que vivem os 250 moradores de um dos principais e mais antigos acampamentos ciganos em São Paulo, localizado no Itaim Paulista, extremo leste da capital paulista.
“Alguns ciganos lêem as mãos, dançam, se vestem com roupas típicas, mas alguns são até evangélicos, como eu, e nem vivem em acampamentos. É um povo como qualquer outro”, conta a dona de casa Magda Santos, 32, cigana que mora no acampamento do Itaim Paulista há oito anos com o marido e os dois filhos. “Eu não sou cigana de sangue, mas me tornei quando casei com um cigano”.
Os ciganos não possuem uma origem única. Uma das teorias mais aceitas diz que são povos de origem indiana e que a partir do ano 1000 teriam viajado o mundo em uma grande diáspora, e se espalhado pelos balcãs, pela Europa e posteriormente por outros continentes.
Enquanto estendia roupa no varal, a cigana e costureira Viviane Alves Pereira, 29, fez questão de responder quais os principais problemas que seu povo enfrenta? A afirmação veio sem titubear: preconceito, invisibilidade e falta de acesso à direitos básicos – um cenário recorrente nas quebradas.
Quem são os ciganos das periferias?
A maioria dos ciganos que vivem nas periferias da Grande São Paulo são da etnia Calon, como Magna e Viviane. Eles são também os que mais sofrem preconceitos por manterem mais as tradições e serem mais facilmente reconhecidos como ciganos, por suas vestimentas e pelo modo de vida nômade, em acampamentos.
Existem outros dois grupos étnicos: os Rom e os Sinti. Eles, porém, não se vestem com roupas típicas e, por isso, acabam passando despercebidos nas cidades.
“Muitos brasileiros já foram atendidos por médicos, enfermeiros e advogados ciganos e talvez nem saibam”, conta o ativista Nicolas Ramanush, 64, presidente da ONG Embaixada Cigana do Brasil, localizada em Santo André, na Grande São Paulo. “Na região, os ciganos se concentraram no bairro do Itaim Paulista e nas cidades de Itaquaquecetuba e Itapevi, com acampamentos próximos às estações de trem”.
Viviane se tornou cigana ao se casar com seu marido, da etnia Calon @Léu Britto/ Agência Mural
Cada etnia se divide em subgrupos e cada um acaba desenvolvendo seus próprios costumes, hábitos, religiões e ritos. “Na minha etnia, por exemplo, nós sempre usamos sapatos decorados, com muitos detalhes, é um costume nosso. Já algumas mulheres Calon são famosas por seus vestidos floridos e por usar lenços”, conta o ativista, que pertence à etnia Sinti.
Eles são o menor grupo do país em número de pessoas. “Se hoje existem 100 famílias [da etnia Sinti] no Brasil é muito”, conta Ramanush. “Isso devido ao período do nazismo. Nós, Sint, quase fomos exterminados”, relembra pontuando que da sua família paterna apenas o pai sobreviveu ao Holocausto e se tornou um refugiado no Brasil.
“Os primeiros registros de ciganos no país datam de 1549. Somos um dos primeiros povos que chegaram aqui”
Nicolas Ramanush
De baixo das lonas
A rotina das famílias ciganas, periféricas e nômades é marcada por mais que a discriminação: elas tem dificuldade de conseguir atendimento de saúde e até de matricular crianças nas escolas, pela falta de endereço fixo. Mais que isso: enfrentam problemas estruturais de São Paulo, como alagamento e enchentes, em barracas de lona, sem segurança.
Acampamento cigano no Itaim Paulista @Léu Britto/ Agência Mural
“Para resolver problemas de documentos e questões de escola das crianças, a gente pede ajuda pros vizinhos e pega emprestado os endereços deles”, conta Magda. “Muitas vezes a vizinhança trata a gente melhor que a prefeitura. Para ter um atendimento melhor, você tem que ir no posto de saúde com roupa normal e não de cigano”.
Um dos casos mais críticos enfrentados pela comunidade foram as enchentes e inundações ocorridas em fevereiro de 2025 no extremo leste de São Paulo, na região conhecida como Jardim Pantanal. Ruas e casas ficaram dias embaixo d`água. Os ciganos do acampamento precisaram enfrentar essa situação em barracas de lona.
“Nós ficamos dias debaixo d’água e quem nos ajudou foram os moradores da região”
Magda Santos
Os moradores do acampamento tiveram de lidar com a falta de acesso à água potável, as barracas foram atingidas e, segundo relatos dos moradores, foi necessário fazer um esforço conjunto para evitar maiores perdas de mobílias e eletrodomésticos, tentando proteger bens do avanço das águas.
Preconceito e invisibilidade
Assim como Magda, Ramanush acredita que para melhorar a vida dos ciganos nas periferias do Brasil, o passo inicial é reconhecer quem são e não tratá-los como invisíveis.
Mesmo com iniciativas públicas como a celebração do Dia Nacional dos Povos Ciganos, em 24 de maio, reconhecido pelo governo federal, direitos básicos ainda são negados para esses grupos. Um exemplo é o fato de eles ainda não serem reconhecidos no Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Famílias viviem em barracas há gerações, com pouco apoio do poder público @Léu Britto/ Agência Mural
Magda lembra da dificuldade de registrar a etnia dos filhos nos documentos. Como não há o reconhecimento oficial de “cigano”, ela acabou registrando os filhos pela cor da pele.
Ramanush passou por uma situação parecida quando recebeu em sua residência a visita de uma recenseadora para realização do Censo de 2022. “Ela me perguntou qual era a minha raça, e eu respondi que ela não estava na lista. Minha tez é branca, mas eu sou cigano”.
“Existem políticas para indígenas, negros e pardos, mas não para ciganos. Temos a nossa cultura, mas não aparecemos. Ser cigano é ser invisível”
Magda Santos
A estimativa do IBGE é que entre 800 mil e 1 milhão de ciganos vivam no Brasil em 2025, mas grupos ciganos acreditam que os números são maiores.
“Eu já viajei o Brasil todo conhecendo ciganos, de todas as etnias. Sem dados, não existem políticas públicas eficientes”, explica Ramanush. “Até para contabilizar quantos ciganos têm em cada município as prefeituras dificultam o processo e acabam não dando o devido auxílio aos povos ciganos”.
Além da falta de reconhecimento, os povos ciganos das periferias têm que lidar com o preconceito – que perpassa gerações nos acampamentos. Ao logo de séculos, eles foram alvos de acusações de furtos, roubos e truques. Não raro, eram associados a raptos de crianças.
Para tentar mudar essa realidade e combater preconceitos, grupos ciganos têm se mobilizado pela aprovação de uma lei federal que torna obrigatório o ensino de história e cultura cigana nas escolas – à exemplo do que já acontece com o povo negro e indígena. A proposta, que tramita na Câmara como PL 3547 de 2015, avançou pouco: está parada na Casa desde novembro daquele ano.

