Em Perus, na zona norte da capital, Hamilton dos Santos, 73, mantém um caderno em que anota as compras dos clientes mais antigos do bar que possui há mais de 20 anos. Aqueles que têm mais confiança podem pagar no final do mês. “Hoje eu trabalho com uma maquininha que aceita cartão. Mas ainda tenho aqueles fregueses mais antigos, que compram e me pagam no mês seguinte”, diz.
Para entrar no grupo do caderninho, contudo, é necessário ganhar a confiança. “Eu preciso primeiro conhecer a pessoa. Ela deve ter um vínculo aqui para poder ter esse espaço”.
A relação de confiança entre cliente e dono é uma das características desse tipo de estabelecimento em bairros das periferias de São Paulo. No dia em que a capital comemora 465 anos, a Agência Mural buscou histórias de donos de bares que atravessam décadas na cidade.
Além de vender bebidas alcoólicas na capital, vários desses estabelecimentos se tornaram uma opção a mais para a compra de mercadorias para o dia a dia. São também um ponto de encontro entre os moradores da região. Foram neles que moradores vindos de outros estados, como Hamilton, encontraram a oportunidade para manter o primeiro negócio.
NO FONTÁLIS, HORA DO PRIMEIRO GOLE
Quando você chega ao Jardim Fontális, na zona norte de São Paulo, a primeira parada é o bar do Marquinhos, o “1º Gole”. O nome do estabelecimento de Marcos Cavalcante Vieira, 42, veio pela posição geográfica. “É o primeiro bar antes de entrar no bairro”.
Ele mora na região desde que nasceu. Resolveu apostar no negócio há 24 anos, quando a situação do bairro era outra. “A população era bem menor, ruas de terra, escassez de transporte público. Agora o bairro cresceu, as ruas estão asfaltadas, tem condução pra todo lado, posto de saúde”, aponta o comerciante. “Quem faz o lugar somos nós mesmos”.
O bairro do Jardim Fontalis faz parte do distrito do Tremembé, na zona norte de São Paulo. Contam os antigos que o nome foi dado por conta de uma fonte de água mineral que havia na região. Tremembé em tupi significa “terreno alagadiço” ou “pântano”.
Esse pedaço da cidade surge a partir do loteamento de grandes sítios e fazendas nos primeiros anos do século 20, próximo da Serra da Cantareira.
Nascido e criado em São Paulo, Marcos nunca pensou em deixar o município. “São Paulo é uma cidade mágica, tudo que você procura aqui você acha. Tem diversidade, versatilidade, uma essência que talvez nenhuma outra cidade do mundo tenha”, diz. “Converso com muita gente de outros estados e até com pessoas de outros países, que veem em São Paulo a oportunidade de poder encontrar tudo, de ter uma vida diferente”, ressalta.
O “1° Gole” já foi um bar maior, porém Marcos resolveu dividir o negócio com uma oficina de motos e uma assistência técnica de celular. “Houve um aumento na concorrência e aí não tem porque manter um espaço grande se dá pra atender a demanda num espaço menor. É o preço da evolução, bairro cresce, concorrência cresce”.
Os nordestinos lideram o ranking de clientes do bar. Marquinhos aponta dois motivos para a presença de vários migrantes no bairro. “A falta de recursos e abandono que a classe política promove em relação ao Norte e Nordeste, e a busca de um sonho de vida melhor, que muitas vezes não se realiza”, diz. “Mas o povo nordestino é guerreiro e confia naquilo que São Paulo tem a oferecer.”.
DE PERNAMBUCO AO ROCK
Na zona leste de São Paulo, um outro bar tem sido o ponto de encontro de moradores do Itaim Paulista há 40 anos. No entanto, há um ano, o estabelecimento é comandado por uma mulher. No “Lora Rock Bar”, localizado no Itaim Paulista, estão o casal Eliane Santos, 44, e Carlos Alberto Santos, 47. O espaço é ponto de encontro dos amantes do rock.
A experiência de Eliane com o negócio foi herdada do tio, Ovidio Santos, conhecido no bairro como “Cabeção”, pernambucano que administrou o ponto comercial durante décadas. Devido o agravamento da sua escoliose – que é o encurvamento anormal da coluna vertebral, de passou o negócio para a familiar.
Quando o casal assumiu o pub conhecido como “Bar do Cabeção”, sabiam que a repaginada de um legado para um bar de estilo “rockn’roll” não seria fácil.
“São Paulo abraça a todas as tribos e isso é o diferencial, mas os governantes deveriam dar mais espaços para quem faz projetos sociais. É muito difícil conseguir fomentos para arrecadações de roupas, comidas e brinquedos para doação”, afirma Eliane, que faz ações sociais no bairro
“Nós não queríamos perder os clientes do meu tio. Ouvimos de muitos que não viriam mais, mas, depois que conheceram o espaço, se apaixonaram”, ressalta Eliane. A paixão pelo estilo musical acompanha o casal desde o início da relação. Juntos há 29 anos, o enredo do romance foi marcado por bandas do “bom e velho rock’n roll” dos anos 1960, 1970 e 1980.
“Ela é quem toca o negócio mesmo, fica atrás do balcão, cobra os pagamentos, anota os fiados, faz os drinks, conversa com os clientes”, conta Santos. “Eu fico apenas na parte da logística e nos serviços gerais”.
No mesmo espaço funciona a sede do motoclub “Família 13.u.b.e.e.r”. O casal avaliou que apesar de existir um nicho de mercado para rockeiros em regiões centrais eles ainda não tinham uma “casa só deles” na periferia.
As reformas duraram um mês, com ampliação do espaço. “Quando entrei, o bar deixou de ser majoritariamente de homens. Tem mais mulheres, que na minha opinião ficam menos acuadas com uma presença feminina.”
Junto da mesa de sinuca também tem palco para bandas de rock e blues, motos customizadas e painéis com tudo o que remete ao mundo das duas rodas.
A maior diferença de ter um bar na periferia do que na área central é o respeito mútuo, afirma Eliane. “As pessoas precisam entender que aqui é um ambiente que não vai ter ninguém mexendo com você, se tem briga resolvemos aqui mesmo.”
PLANO PARA APOSENTAR
Nascido em Monte Alegre, no Paraná, Hamilton dos Santos, 73, chegou ao bairro de Perus, noroeste da cidade de São Paulo, há 40 anos. Na mala, além da experiência de agricultor, o desejo de construir na cidade grande uma vida tranquila, feliz e repleta de realizações.
Perto de completar 50 anos de casamento com Maria Moreira dos Santos, com quem teve seis filhos, ele trabalha todos os dias no “Bar do Sr. Hamilton”.
Ele começou no meio da década de 1990, com a venda de salgadinhos e sorvete. O comércio funcionava durante a folga do trabalho de operador de caldeira em uma empresa de celulose. Na época, improvisou uma das garagens de onde morava no Jardim Russo. “Foi puramente uma saída, uma esperança de um negócio futuro para minha sobrevivência”, comenta.
Antes mesmo de aposentar, utilizou parte do que economizou para melhorar e ampliar o ponto de venda. Chegou a investir na construção de uma segunda mercearia, no Recanto do Paraíso. Mas por conta de assaltos, fechou o espaço após 2 anos e manteve apenas a unidade no Jardim Russo.
“Para mim é religioso isso aqui (bar) e minha família. Eu trabalho desde os meus 7 anos de idade, trabalhava na roça. Então para mim, isso aqui é um trabalho sério. E eu só quero trabalhar”, enfatiza.
Atualmente, o “Bar do Sr. Hamilton” funciona das 9h30 às 21h, sete dias por semana. Só fecha em ocasiões especiais. Se precisa se ausentar, ele avisa previamente os clientes.
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Na parte da manhã, o funcionamento é diferente. Quando os clientes querem ou precisam de algo, tocam a campainha e aguardam para ser atendidos. “Atendo, muitas vezes pela grade [do portão] mesmo. Ao finalizar a venda, volto para meus afazeres dentro de casa”, explica Hamilton, que desce para o espaço definitivamente no final da tarde.
“É a partir das 16h que começam a chegar os clientes, quase todos homens, que costumam permanecer por mais tempo, para beber e jogar conversa fora”, afirma.
“Eu acredito que cada pessoa tem um lugar certinho para morar. Basta buscar seu lugar compatível. E para mim, compatível é aqui, em Perus, São Paulo. Não pretendo sair daqui para outro lugar, de jeito nenhum”.
O paranaense que se considera peruense, fala com carinho dos clientes que viu crescer. “Desde quando comecei aqui, tem gente que conheci pequenininho”. As crianças começam a frequentar o comércio no colo da mãe. Mas não demora muito para que elas comecem a ir ao local sozinhas, para comprar balas.
Sobre a cidade de São Paulo, relembra que nela buscou uma oportunidade e diz ter orgulho de morar aqui. Aponta que mesmo que as circunstâncias atuais sejam diferentes das que ele enfrentou, em 1979, quem hoje escolhe a capital para começar uma nova história, tem chances de assim como ele, obter conquistas.
“Eu acredito que cada pessoa tem um lugar certinho para morar. Basta buscar seu lugar compatível. E para mim, compatível é aqui, em Perus, São Paulo. Não pretendo sair daqui para outro lugar, de jeito nenhum”.
E dá a receita para manter um negócio. “Tem gente que não dá valor para cinco centavos. Para mim, ainda é dinheiro. Tenho um grande movimento de vendas de balas, que é uma venda rápida e quando somada ao fim da tarde, resulta em algo no fim do mês”.