Você se lembra onde estava no dia 19 de agosto de 2019? Por volta das 15h30 daquela tarde, o “dia virou noite” em São Paulo, deixando o céu tão escuro quanto nas piores tempestades que a cidade já enfrentou. Contudo, ao contrário da chuva, o que causou a escuridão foi a fumaça e fuligem das queimadas na floresta amazônica.
Esse talvez tenha sido o sinal mais visível à população paulistana da gravidade das queimadas na maior floresta tropical do mundo. Porém, as consequências desses crimes por lá estão bem presentes na vida da capital paulista, sobretudo para quem vive nas regiões periféricas.
Elas envolvem desde a incidência de enchentes durante as chuvas de verão até o aumento no valor das contas de água e luz.
A convite do Greenpeace Brasil, a Agência Mural foi até Porto Velho, capital de Rondônia, no Norte do país, a quase 3 mil quilômetros de São Paulo, para um sobrevoo em uma área de queimadas e desmatamento na Amazônia.
Além de ver como a destruição da floresta acontece, a viagem permitiu entender como os crimes ambientais impactam no clima e na economia no Sudeste – e como chega até as periferias, na casa de quem vive em regiões com menos infraestrutura.
Cadáveres de floresta
O roteiro do voo teve como destino o município de Lábrea, no sul do Amazonas, que fica a cerca de 400 quilômetros de Porto Velho. Lábrea é uma das cidades com mais área verde devastada entre as 32 cidades que formam a Amacro (união das siglas dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia).
Pouco depois de decolar em Porto Velho já era possível encontrar áreas com fumaças ativas, ou seja, queimadas feitas há pouquíssimo tempo. Mesmo com a janela da aeronave fechada, o cheiro dessas fumaças era sentido dentro da cabine.
É importante citar também que a capital rondoniense é uma das piores cidades para se respirar no Brasil. No final de agosto, especialistas em meteorologia declararam ao portal G1 que a qualidade do ar em Porto Velho era equivalente a fumar 100 cigarros por dia.
No dia da viagem, em 14 de setembro, o clima era bem quente e abafado. Mesmo tendo uma boa área verde e sendo uma cidade plana, o calor em Porto Velho se assemelhava às chamadas “ilhas de calor”, comuns em regiões como a avenida Paulista, no centro de São Paulo.
Nesse tipo de fenômeno, o asfalto e os prédios impedem a circulação e a absorção do ar, fazendo com que o calor fique mais concentrado. Só que no caso rondoniense, a sensação térmica é consequência direta das queimadas.
O sobrevoo evidenciou os limites que são “respeitados” pelos grileiros. A extensa devastação, formada por áreas oficialmente chamadas de “terras públicas não destinadas”, acabava exatamente onde começavam as áreas de preservação ou os territórios indígenas.
O contraste entre o Parque Nacional do Mapinguari, entre os estados de Rondônia e Amazonas, e os vários hectares de pasto era gritante. Enquanto o Mapinguari oferecia uma bela imagem de árvores a perder de vista (como deveria ser), esses imensos terrenos mostravam o que sobrou do trabalho dos madeireiros e incendiários.
Pouco depois também foi possível observar os quatro “drivers” (agentes) do desmatamento ocorrendo ao mesmo tempo. Numa mesma paisagem via-se uma área de monocultura de soja, outra de criação de gado e outra de exploração de madeira, tudo isso circundado por novas queimadas que visavam ampliar esse território.
Uma das áreas de maior destruição recente vista durante o sobrevoo correspondia a uma área de 1.800 hectares. Essa devastação supera a área de cidades como Poá e Jandira, ambas na região metropolitana de São Paulo.
Essa é uma pequena amostra da situação da ação criminosa em Lábrea. Segundo o Sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), do INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais), o município foi o campeão em desmatamento entre setembro de 2021 e agosto de 2022.
Foram 571 km² de floresta devastada durante os 12 meses analisados. Todo esse rastro de destruição equivale a mais de 1/3 de todo o território da capital paulista, que é de 1.521 km².
De acordo com o INPE, os oito primeiros meses de 2022 tiveram 75.592 focos de incêndio na Amazônia, superando a quantidade registrada em todo o ano de 2021, que foi de 75.090 queimadas.
Como isso chega nas quebradas de SP?
Para começar a falar sobre os impactos desses crimes nas periferias de São Paulo, é preciso passar por uma dinâmica chamada “rios voadores”. A Amazônia recebe vapor das águas do litoral brasileiro e absorve essa água em forma de chuva, mantendo assim a floresta úmida.
O vapor dessa chuva é devolvido à atmosfera em direção ao Oceano Pacífico, mas esbarra na região dos Andes, vindo assim em direção ao Sudeste.
“A Amazônia é conhecida como pulmão do mundo, quando na verdade ela é o coração. É ela quem faz esse grande bombeamento da água, como se fosse o sangue da Terra, por essas veias que são as correntes de ar”, compara Marcelo Laterman, porta-voz de justiça e clima do Greenpeace Brasil.
Só que, com as queimadas, ao invés de vapor e chuva, o que a Amazônia fornece à atmosfera é fuligem e fumaça. No começo de setembro deste ano, houve relatos de moradores de São Paulo que sentiam cheiro de queimada no ar, uma amostra semelhante ao episódio da escuridão de 2019.
Além disso, o desmatamento faz com que essas águas que deveriam ser absorvidas pela floresta cheguem mais rápido ao sudeste, causando tempestades mais severas. A falta de chuva na Amazônia faz com que tenhamos mais períodos de seca e calor por aqui. Tudo está interligado.
“A floresta está se transformando em um secador de cabelo no lugar que era uma mangueira”
Marcelo Laterman, porta-voz do Greenpeace Brasil
As tempestades severas e os longos períodos de seca são o que os especialistas em clima chamam de “eventos extremos”. Em julho de 2022, a capital paulista teve 47 dias consecutivos sem chuva, registrando assim a pior marca neste mês em 89 anos.
A consequência mais conhecida da falta de chuva são os esvaziamentos nas represas, problema crônico na cidade, mas ela também impacta diretamente na conta de luz. Afinal, se não tem água para as represas, também não tem para as hidrelétricas. Com as usinas em baixa, o país se vê obrigado a procurar outras fontes de energia.
De acordo com o Balanço Energético Nacional, produzido pela EPE (Empresa de Pesquisas Energéticas), o fornecimento via hidrelétricas caiu 4% de 2020 para 2021, enquanto o uso de fontes não renováveis (como carvão, gás natural e petróleo) subiu 6,7% no mesmo período.
Além de lançar mais poluentes na atmosfera, as usinas termelétricas têm um custo muito maior que as hidrelétricas e são responsáveis diretamente pela chamada “bandeira vermelha” nas contas de luz.
Essa tarifa adicional é acionada quando as condições de acesso aos recursos hídricos são desfavoráveis e representam um acréscimo de R$ 6,50 (a cada 100 kW/h) no patamar 1 e de R$ 9,79 no patamar 2.
Uma pesquisa feita pelo IPEC no fim do ano passado revelou que os gastos com energia elétrica e gás consomem metade da renda de 46% dos brasileiros. Ainda de acordo com a pesquisa, 22% dos moradores afirmaram deixar de consumir algum alimento para conseguir pagar a conta de luz.
Além disso, a energia elétrica tem impacto direto no valor dos alimentos. Segundo a campanha Peso da Luz, realizada pela Abrace (Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres), 48% do valor cobrado pelo litro de leite corresponde aos gastos com energia. Na carne, essa proporção é de 34%.
“No quadro em que o Brasil está, de retorno ao mapa da fome, a questão do custo energético no prato é emblemática”, afirma Laterman.
Para o especialista do Greenpeace, uma forma de reduzir o impacto da conta de luz no orçamento da população mais pobre é a adoção da chamada “tarifação progressiva”.
“As regiões onde há serviços mais precários, onde a energia sequer chega, pagam o mesmo valor percentual de quem tem o serviço pleno. A atual tarifa social é perigosa para quem está logo acima, a classe média baixa, que acaba sendo onerada pelo desconto oferecido aos mais pobres. Fazendo essa progressividade, você consegue contemplar toda essa transição de injustiças de forma mais gradual”.
A quebrada como parte da solução
Ainda que sejam vítimas de toda essa situação, os moradores das regiões periféricas podem ser protagonistas da minimização dos impactos da crise climática, por meio das chamadas “medidas de mitigação e adaptação”, que vão desde o incentivo à agricultura familiar ao trabalho de cooperativas solares.
“As periferias já têm iniciativas e coletivos falando da questão da justiça climática, usando esse tema como ponto de entrada na luta por moradia digna, pedindo um plano de adaptação climática”, explica o porta-voz do Greenpeace.
“A justiça climática é uma forma de se pedir por políticas públicas que vão na linha dos direitos básicos e fundamentais, que são moradia, saneamento e acesso à água”
Marcelo Laterman, porta-voz do Greenpeace Brasil
Essas medidas de mitigação não envolvem simplesmente reduzir o consumo de luz e de água, como os governos insistem em sugerir (apesar de que banhos mais curtos sempre são bem-vindos).
É importante lembrar que, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o setor agropecuário é responsável por 70% do consumo de água do planeta, enquanto o uso doméstico corresponde a 8%.
“O problema no Brasil é o uso do solo, esse modelo de produção pautado pela monocultura, pelas grandes propriedades e pelo uso ostensivo da terra. A solução para atingir esse principal vetor é mudar a forma de se produzir alimentos”, complementa Laterman.
Ele cita como exemplo o trabalho da Agência Solano Trindade, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Um dos principais trabalhos do empreendimento cultural é a oferta de alimentos orgânicos para os moradores da região, por meio do Armazém Organicamente.
“A agroecologia parece ser uma coisa hype, mas não, é produção no quintal. A gente quer comida para comer, então vamos produzir localmente. A revolução está nessa ideia de repensar o modo de produção e consumo, e o embrião, o conhecimento, a ancestralidade para isso é original das periferias”, afirma.