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Falta de contato com natureza pode impactar no desenvolvimento de crianças das periferias

Emanuele e sua mãe busncam alernativas de contato com a natureza em Paraisópolis

Por: Jacqueline Maria da Silva

É um corre e corre desenfreado para não perder de vista os peixinhos no aquário, cheirar as flores do jardim, ouvir o canto dos pássaros, agachar no canteiro de plantas e colocar o caminhãozinho de brinquedo para andar na terra. “Qual seu brinquedo favorito?” pergunta a reportagem. “Aquele, aquele e aquele”, responde apontando a gangorra, o balanço e o escorregador.

Assim foi uma manhã com Miguel Carleto da Conceição, 13, no Parque Nabuco, no Jardim Jabaquara, zona sul. Ele frequenta o local com a mãe, a manicure Débora da Silva Carleto, 34, ao menos uma vez por semana. “A natureza faz toda a diferença para uma criança autista e hiperativa como meu filho, que não se concentra. Aliás, para todas as crianças”, diz Débora.

As mais interessadas no assunto, as crianças, concordam: “quando estou na natureza me sinto alegre, presto atenção e fico olhando as coisas. Eu corro, mas também paro um pouquinho para deitar e olhar para o cosmo. Fico calma”, descreve Emanuele Brito dos Santos Viana, 9, de Paraisópolis.

Miguel Carleto da Conceição brincando no Parque Nabuco, no Jardim Jabaquara, zona sul de São Paulo

Apesar do contato com a natureza ser um direito das crianças, os meninos e meninas que vivem nas grandes cidades e nas regiões metropolitanas têm cada vez menos oportunidades de estar em áreas verdes, rios e na terra.

E quando falamos das crianças das periferias, a situação é ainda mais grave. Isso porque, em geral, elas vivem em locais com menos áreas de lazer, equipamentos públicos, opções de mobilidade e menor renda familiar para se deslocar até espaços de natureza.

As mães nas quebradas percebem essa realidade e temem que a falta de contato dos filhos com a natureza possa reduzir as oportunidades de aprendizado e brincadeira. A preocupação tem fundamento. Pesquisadores da saúde e educação observam com cuidado os impactos da falta de natureza no desenvolvimento das crianças e já cunharam um termo para falar do assunto: Transtorno de Déficit de Natureza.

“Quando estou na natureza me sinto alegre”, diz Emanuele

Ele não diz respeito a um diagnóstico médico, mas a um termo usado para chamar atenção para os impactos negativos relacionados ao distanciamento das crianças da natureza e de oportunidades de brincar e aprender ao ar livre, fenômeno crescente sobretudo nas periferias.

“É na natureza que as crianças experimentam a sua potência de uma forma que a gente não encontra em outras situações e em nenhum outro brinquedo pronto. Ao mesmo tempo, esse contato também é muito pacificador e restaurativo”, diz a especialista na relação infância e natureza do Instituto Alana, Maria Isabel Amando de Barros, 51, de Carapicuíba.

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Fotos: Léu Britto/ Artes: Magno Borges

Pra falar com passarinhos

Na zona oeste da capital, no distrito de Rio Pequeno, visitas ao parque despertam a fantasia de Emanuelly Cazumba, 9, e do seu irmão Davi Cazumba, 5. “[No parque] tem escorregador e mais espaço para a aventura de brincar. Eu sou a pirata e o Davi é o capitão do navio”, conta a menina. “Eu subo bem alto nas árvores e falo com os passarinhos”, acrescenta Davi.

Além da imaginação, o afeto também ganha espaço na natureza. “Nela as crianças têm um brincar ativo, a partir de elementos naturais, que nutrem a criatividade e convidam os brincantes a acessar desejos internos e materializá-los em forma de brincadeira”, diz Maria Isabel.

Estudos apontam que ao explorar o ambiente por meio do brincar, principalmente nos primeiros anos de vida, a criança desenvolve aspectos cognitivos que terão impacto na forma como ela vai se relacionar com as pessoas e com o mundo quando adulta.

Emanuelly e Davi brincando em casa @Léu Britto/ Agência Mural

A terapeuta ocupacional Luciane Carneiro Belfort, 34, já observa essa realidade em seus estudos. Ela trabalha em Unidades Básicas de Saúde da Favela Vila Clara e Americanópolis, na zona sul de São Paulo, onde realiza campanhas sobre a importância do brincar ao ar livre.

“Somente nesses espaços a criança estimula em maior grau sua capacidade de interocepção, um sentido pouco falado, que diz sobre reconhecer o que acontece no próprio corpo, suas emoções e necessidades, como perceber se está com sono, fome ou irritada”, diz.

Brincar na natureza e em espaços ao ar livre ajuda a modular sensações e sentidos, como equilíbrio, percepção, audição e tato, ao passo que ambientes fechados, por vezes, impedem o extravasamento de energia, causando estresse, irritação e mau humor.

“Não posso nem imaginar ele sem o parque. Aqui ele fica mais tranquilo e melhora a agitação e agressividade”, relata Debora. A importância do contato com a natureza é tão grande para seu filho que recentemente ela se mudou da favela do Vila Clara, em Cidade Ademar, zona sul, para o bairro do Jardim Prudência, no mesmo distrito periférico, mas mais perto do parque.

Davi exibe seus brinquedos favoritos @Léu Britto/ Agência Mural

Transtorno de Déficit de Natureza?

“A gente tinha mais contato com a natureza, brincava na terra e subia nas árvores Aqui isso é muito difícil. Está longe da infância que eu vivi”, descreve Ana Lucia Alves Cazumba, 42, mãe de Davi e Emanuelly, que cresceu no interior da Bahia.

O Transtorno de Déficit de Natureza foi citado pela primeira vez em 2005 pelo jornalista americano Richard Louv, que é especialista em direitos da infância, cofundador da organização Children and Nature Network e autor do livro “A última criança na natureza”.

Nele, o jornalista reuniu evidência de que crianças podem apresentar sintomas de adoecimento físico e mental por conta do afastamento da natureza. Entre eles, estão sobrepeso, falta de habilidade motora, problemas de aprendizagem, ansiedade, dificuldade para dormir, agressividade e agitação.

“A criança precisa da natureza para se desenvolver, correr, ser criança. Eu tenho medo de minha filha perder aventuras, ficar com medo de explorar [coisas novas], e exercitar menos a imaginação, a mobilidade, as amizades e a identidade”, diz a jornalista e comunicadora Glória Maria Brito, 24, de Paraisópolis, que é mãe de Emanuele Brito dos Santos Viana, 9.

A menina gostava de brincar nas vielas onde ficava sua antiga residência, também na favela, porém a mãe deixava com cautela, já que havia presença de ratos. E é exatamente por essa falta de planejamento urbano, segurança e saneamento básico, que especialistas reforçam que a falta de contato com a natureza nem sempre é uma escolha e que as famílias não podem ser responsabilizadas.

“Eu adoro ir a praia”, comenta a Emanuelly Cazumba, da zona oeste. O programa, no entanto, é raro para a família, assim como a possibilidade de acessar áreas verdes para brincar em Rio Pequeno, quebrada onde mora. O parque mais próximo da casa é o Vila Lobos, que fica a 30 minutos de ônibus.

Na maioria do tempo, as opções são jogos do celular, boneca, carrinhos e até as paredes dos dois cômodos em que vivem, que viram lousas para desenho. Para garantir que os filhos possam mexer na terra, a mãe, Ana, improvisou vasos de plantas nas escadas do quintal.

Dicas de como garantir contato das crianças com a natureza nas quebradas

1

Quando sair, observe características da estação do ano, como flores nascendo ou o vento mais frio

2

Incentive a criança a olhar para o céu, dia e a noite, e prestar atenção nas nuvens e fases da lua

3

Pergunte a ela sobre as sensações e sentimentos que têm em dias calor e frio ou durante o dia e à noite

4

Cultive plantas e ervas em casa. Elas amenizam a sensação de falta de verde

5

Faça percursos a pé e os transforme em uma brincadeira ou conversa. A ida para a escola, por exemplo pode ser um passeio divertido

Área verde como direito

As famílias de Débora e Ana moram em distritos com percentual de cobertura vegetal abaixo da média de São Paulo (27,29%), conforme o Mapa da Desigualdade de 2023, da Rede Nossa São Paulo.

Já Glória, que reside em Paraisópolis, parte do distrito da Vila Andrade, tem vegetação por habitante acima da média (46,77%), porém, o dado não reflete a realidade de todo o distrito.

“Nas periferias as famílias estão preocupadas com tantas outras coisas que muitas vezes não param para pensar em como a falta de verde interfere na sua qualidade de vida. As prioridades são moradia digna e ter o que comer”, diz a terapeuta ocupacional Luciane.

Apesar disso, de norte a sul de São Paulo a opinião das crianças é unânime: “natureza é liberdade”. “Elas usam essa palavra porque percebem que alguma coisa está faltando, que algumas pessoas têm ou tiveram uma experiência de infância que é marcada pela liberdade que elas não têm”, aponta Maria, do Instituto Alana.

Por isso, é fundamental cobrar do poder público políticas que garantam às crianças o direito de brincar em contato com a natureza nas periferias. Entre elas aumentar de áreas verdes, implantar de parques, praças e equipamentos de lazer, reforçar a segurança pública e viária e, em especial, envolver as crianças nas decisões sobre onde querem brincar e como sonham que esses locais sejam.

“Eu queria ter mais espaço para brincar, um pouco maior, que caiba bastante gente”, sonha Manu enquanto aproveita um espaços de lazer, todo de concreto, na favela de Paraisópolis.

Conheça projetos periféricos que estimulam contato das crianças com a natureza

Instituto Alana no Jardim Pantanal

Possui um polo na periferia da zona leste, que foi a primeira sede do instituto. O espaço é aberto ao público, com atividades de lazer, arte e articulação para melhoria do território.

Navegando nas Artes

Projeto promove vivências náuticas por meio de barcos à vela e usa arte e grafitti para sensibilizar a população que vive às margens da Represa Billings, na zona sul, sobre o cuidado com o meio ambiente. 

OCA Escola Cultural

Atua com pesquisa e ações em espaços públicos para garantir o direito de brincar, sobretudo na natureza, além de projetos de difusão da cultura brasileira. Localizado no Jardim Colonial, em Carapicuíba.   

Coletivo Realezas de Aya

Busca valorizar a história ancestral da população negra por meio de brincadeiras, oficinas, workshops  e contação de histórias. 

Esta reportagem foi produzida com apoio daReport For The World

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