Duas vezes por mês Diana Souza, 35, leva a filha de dois anos ao hospital do Mandaqui. Desempregada e mãe solo, ela depende do SUS (Sistema Único de Saúde).
Moradora do Jardim Paraguaçu, em São Mateus, na zona leste, Diana só consegue atendimento para a filha na zona norte da cidade. Depois de três ônibus e mais de 30 quilômetros percorridos, a menina tem acompanhamento de fisioterapeuta, oftalmologista e clínico.
As UBS (Unidade Básica de Saúde) são as responsáveis por fornecer o primeiro atendimento aos pacientes e respectivos encaminhamentos à exames e especialistas, mas a mãe prefere levar a filha direto ao hospital da zona norte já que no posto do bairro consultas e exames costumam demorar.
“A minha gestação foi aí [UBS Jd Paraguaçu]. Fiquei cinco meses sem passar na ginecologista”, comenta Diana. “A desculpa é que a agenda estava lotada e não tinha espaço. Geralmente eu passava na enfermeira”, complementa.
A dificuldade encontrada por Daiane é percebida nos dados do cumprimento de metas da UBS Jardim Paraguaçu.
Quem administra a unidade é a Fundação ABC, uma OSS (Organização Social da Saúde) responsável também por mais 23 unidades de saúde na subprefeitura de São Mateus. Em contrato firmado com a prefeitura desde 2015 cada unidade tem uma meta de atendimento, entre consultas e procedimentos, que serve de parâmetro ao trabalho a ser feito pela OSS.
Em 2019, antes da pandemia do novo coronavírus, o posto de saúde do Jardim Paraguaçu não realizou 1.200 atendimentos ginecológicos, segundo levantamento da Agência Mural obtido via LAI (Lei de Acesso à Informação). De janeiro a julho deste ano, durante o distanciamento social, 25% da meta de ginecologia da unidade foi cumprida.
Durante a gravidez de Diana, um profissional da UBS Jardim Paraguaçu fez uma leitura errada do ultrassom. A mãe explica o que aconteceu. “O médico daqui falou que a data estava certa e o particular que eu fiz falou que estava errada. Por conta do erro daqui a minha filha nasceu depois da data certa”.
Além da ginecologia, a pediatria também é um problema na unidade do Jardim Paraguaçu. A filha de Diana esperou sete meses por uma consulta com o especialista.
SEM PEDIATRAS
Neste ano, apenas 17% das consultas pediátricas previstas em contrato foram realizadas, enquanto em 2019 a média de atendimentos às crianças ficou em 85%. Segundo levantamento da Folha de SP, até agosto deste ano, cerca de 457 mil pessoas aguardavam na fila de espera por uma consulta de especialidade.
O mapa da desigualdade 2020, levantamento anual da Rede Nossa São Paulo, indica o tempo médio de espera por uma consulta no distrito de São Mateus em 28 dias.
No ano passado, a média de consultas das especialidades clínico, pediatra e ginecologista realizadas ficou em 82% na UBS Jd Paraguaçu. Até julho deste ano esteve em 32%.
Ao considerarmos todas as unidades geridas pela Fundação ABC em São Mateus a média fica em 88%, em 2019, e em 67% neste ano. 15 unidades não alcançaram as metas de produção de 2019. Em 2020 esse número chega a 21 unidades.
Para o pequeno Davi, 7, a espera por um pediatra também é um problema. A mãe do garoto, Jennifer Rossi, 27, explica que em agosto o menino começou a sofrer com manchas na pele. De primeira eles foram a um AME (Ambulatório de Especialidades).
O ambulatório os encaminhou à UBS Jd Paraguaçu. No posto, uma enfermeira atendeu o menino, solicitou um exame, coletou o sangue e, em outro dia, uma segunda enfermeira leu o resultado do exame e marcou uma consulta com o pediatra para novembro.
“Uma criança que está com problema de colesterol, problema de vitamina e eles não entrarem com a medicação eu acho errado isso. É uma criança não é um adulto, né?”, afirma.
Sobre o atendimento realizado por enfermeiras, Jennifer comenta as explicações que recebeu dos profissionais. “Ela falou que é por causa da escala da Covid-19. Ela falou que os médicos estão trabalhando por escala”.
Hoje, a UBS Jd Paraguaçu conta com dois médicos clínicos, dois ginecologistas e um pediatra e custa cerca de R$ 230 mil por mês. De janeiro de 2019 a julho de 2020 a Fundação ABC recebeu mais de R$ 241 milhões da prefeitura de São Paulo para gerenciar as 24 unidades sob sua administração.
A Agência Mural apurou, por meio da prestação de contas da Fundação ABC obtida via LAI, que até julho deste ano a OSS teve cerca de R$ 20 milhões em caixa, além do valor recebido mensalmente de aproximadamente R$ 15 milhões para gerir a região.
Questionada sobre o valor disponível, a Fundação ABC afirma em nota que o valor em caixa retorna à prefeitura ao fim do contrato, no entanto não disse como o saldo foi construído e por que não foi utilizado.
Na questão das metas de produção abaixo do determinado em contrato, a Fundação ABC justifica os dados por afastamento de profissionais por motivos de saúde, vagas em aberto e outras situações do cotidiano das unidades.
Sobre o atendimento de enfermeiros no lugar de médicos, a OSS explicou que se respalda por leis que qualificam os profissionais de enfermagem em atender, solicitar e ler exames dos pacientes .
Cabe a prefeitura acompanhar a realização das metas estabelecidas e a prestação de contas das unidades. Seis em cada 10 unidades de saúde da cidade são terceirizadas e vale lembrar que a cada R$ 100 aplicados na saúde R$ 40 vão para OSS.
Por meio de nota a Secretaria Municipal de Saúde afirma que as OSS devem atingir a porcentagem mínima de 85% por especialidade, ou serviço, contratado. Segundo a pasta, caso uma terceirizada não atinja o mínimo esperado, haverá desconto proporcional no repasse do mês seguinte.
Sobre a prestação de contas a SMS pontua que recebe mensalmente os extratos bancários, balancetes das Organizações Sociais e os avalia baseada em normas internas. A pasta, também por meio de nota, ressalta o trabalho das OSS na capital.
“A Secretaria Municipal da Saúde considera o modelo de funcionamento das Organizações Sociais de Saúde (OSS) na cidade de São Paulo um avanço tanto nos critérios de eficiência como nos de transparência. Haja vista o acordo firmado com o Ministério Público que, a partir de parâmetros de prestação de contas adotados atualmente, garante que as próximas administrações mantenham a mesma metodologia e qualidade.”
Questionada sobre os R$ 20 milhões em conta da Fundação ABC a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo explica que as OSS podem segurar valores recebidos da prefeitura para ajustar o saldo financeiro.