Em janeiro, minha mãe viajou de avião pela primeira vez. Aqui em São Paulo, ela é conhecida como Carmen, pois quando chegou, há 42 anos atrás, ninguém acertava seu nome: Carmosina.
Ela tem uma história muito parecida com as de milhares de mulheres que moram na capital paulista, nascida no Nordeste – especificamente, na cidade de Érico Cardoso, no sul da Bahia – ela migrou aos 28 anos em busca de trabalho para o Jardim Ângela, na zona sul da capital, aos 36 se casou, aos 41 se tornou mãe, aos 42 se divorciou e passou a criar a única filha, eu, que à época tinha 3 meses de vida.
Dona Carmosa é uma das poucas entre 10 irmãs e irmãos que fez do Sudeste sua moradia definitiva. A maioria da nossa família mora na Bahia. Assim, quando eu completei 8 anos de idade, finalmente ela me levou pela primeira vez ao seu estado de origem.
Eu fiquei encantada, não apenas pelo destino e pela descoberta de uma enorme família até então desconhecida, mas pela forma mágica como o país se transformava conforme avançávamos na estrada durante 28 horas de viagem, que se transformavam em 30 ou 34, a depender das condições da pista e do ônibus que nos transportava pelo interior de São Paulo, atravessando Minas Gerais até chegarmos ao nosso destino.
Em 2022, completaríamos três anos que não visitávamos à família. Nas viagens anteriores, minhas propostas de que fossemos de avião foram deixadas de lado, devido a falta de dinheiro e por um ligeiro medo de voar de uma certa senhora.
Desta vez, eu consegui ser convincente o bastante: pouparíamos tempo, seria mais seguro em tempos de pandemia, já que não pararíamos em várias cidades pelo caminho, e eu tinha dinheiro para pagar as passagens.
Embarcamos no dia 4 de janeiro, do aeroporto de Guarulhos, cujo tamanho e processos automatizados impressionaram mamãe. No mais, ela agiu como sempre age quando se defronta com algo desconhecido, fingiu costume. Consegui um assento na janela do avião para que ela conseguisse observar o lado de fora durante o voo.
Durante o percurso de aproximadamente 1h30 fomos listando as outras mulheres da nossa família que já tinham andado de avião, e chegamos à impressionante lista de dois nomes: uma das minhas primas e minha madrinha, irmã mais velha de minha mãe.
Nos dois casos, as viagens ocorreram enquanto elas trabalhavam como babás para famílias ricas que tinham condições de levá-las nas viagens para cuidar das crianças enquanto os pais aproveitavam as férias.
Foi nessa conversa que eu mesma me dei conta de que aquela era a primeira vez que eu viajava de avião a lazer, pois todas as minhas viagens anteriores foram a trabalho.
Hoje, aos 28 anos, a mesma idade que minha mãe tinha quando veio para São Paulo, e como boa parte dos jovens das classes populares que alcançaram a universidade ou conseguiram alguma ascensão financeira em relação a geração anterior de suas famílias, fico profundamente emocionada quando consigo experienciar junto com ela esses espaços que nos foram negados pela vida toda.
Não pelo fetiche do consumo ou por crença no mito do mérito, mas como uma reivindicação do nosso direito ao descanso e ao lazer e como uma declaração:
Não deixaremos os nossos para trás, não nos esqueceremos das lutas que nos permitiram dar alguns passos adiante
Tivemos a sorte de uma viagem tranquila e sem turbulências, mamãe pode observar que as nuvens parecem bolinhas de algodão quando vistas de cima. No momento em que o avião tocou o solo no Aeroporto Glauber Rocha, em Vitória da Conquista, Dona Carmosina virou para mim e disse rindo muito alegre: “Sentou, um passarinho sentou na Bahia!”. Ela se referia ao avião, mas me lembrou instantaneamente do apelido que eu tinha quando criança,”passarinho”.
Por ela, minha mãe, e por minhas ancestrais vivas e mortas é que eu luto as lutas deste mundo que é especialmente hostil com as mulheres negras. Aos 70 anos minha mãe ainda tem um mundo inteiro para descobrir, e eu vou com ela.
*Esta coluna abre a editoria Pode Crer em 2022. Toda primeira terça-feira do mês, um autor ou autora das periferias será convidado para escrever neste espaço