Até o começo dos anos 2000, o Brasil convivia com a internação de pessoas em instituições de longa permanência, vulgarmente conhecidas como manicômios. Os locais lidavam com casos na época considerados “incuráveis”. Não raro, pacientes passavam uma vida internados e excluídos da sociedade. Os motivos incluiam transtornos mentais, deficiências físicas e uso de drogas, por exemplo.
Um forte movimento da sociedade civil, chamado de Luta Antimanicomial, culminou na Reforma Psiquiátrica de 2001, um marco histórico legal que estabeleceu um novo olhar no cuidado em saúde mental. Ela possibilitou ampliar a rede assistencial para além das instituições de longa permanência, trabalhando na reabilitação e reinserção dos indivíduos nas comunidades onde vivem.
A partir dessa mudança, foi criada a Rede de Apoio Psicossocial do SUS (Sistema Único de Saúde). Ela previu a implantação de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de diversas modalidades nos municípios brasileiros.
“A proposta dos CAPS não é internar, nem excluir da vida social. Ele é um recurso justamente para evitar isso. É um dispositivo onde a gente articula a rede de proteção em um espaço humanizado que olha para a individualidade de cada um”, diz a assistente social Daniela Cecilia Silva, que trabalha em uma das unidades.
Em 2024, a história de três crianças que permaneceram meses internadas em CAPS por meses parece ser um passo atrás nessa linha do tempo de conquistas.
Entenda a história
Amaro, Olívia e Nina, três irmãos, atualmente com 12 e 13 anos, protagonizaram um caso que acende sinal de alerta quando o assunto é garantia de direitos das crianças e dos adolescentes: após serem conduzidos para um abrigo em Diadema, na Grande São Paulo, por negligência familiar, foram internados em unidades do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) não preparadas para acolhidas de longa permanência de crianças. Passaram meses dormindo em um consultório médico, sem ir para a escola e sem informações precisas sobre seu diagnóstico.
Confira o especial completo:
O CAPS virou casa
O que a história de crianças internadas por meses conta sobre saúde mental nas periferias?
Patologização dos comportamentos
Graças à Luta Antimanicomial, as internações psiquiátricas passaram a ser um dos últimos recursos de tratamento, sempre pelo menor tempo possível e apenas para casos de profundo sofrimento para o paciente.
Para as crianças, as internações são ainda mais restritas e pontuais. Elas podem ocorrer em hospitais psiquiátricos adaptados para a faixa etária ou em alguns CAPS que têm acolhimento noturno, porém com um prazo máximo de 14 dias, como previsto em portaria do Ministério da Saúde.
A assistente social Daniela, que atua em um CAPS Infantil na capital paulista, afirma que o encaminhamento de crianças que vivem em abrigos – como os três irmãos de Diadema, na Grande São Paulo – para tratamento psicossocial não é incomum. O que preocupa no caso, porém, foram os motivos que levaram as crianças à internação: questões ligadas ao comportamento, na época marcado por agressividade.
Arte: Magno Borges/ Agência Mural
Os mais vulneráveis a terem comportamentos transformados em doenças são as crianças e adolescentes pretos e periféricos, os que mais sofrem com racismo e discriminação, inclusive nos espaços de saúde. A tendência, segundo assistente social Daniela, é que as crianças brancas e de regiões mais ricas recebam diagnósticos específicos, como autismo.
A psicóloga Flávia Blikstein concorda. Ela é autora do livro “Saúde Mental: retrato de crianças esquecidas” e investiga a internação de meninos e meninas e sua exclusão da vida social. Em seus estudos, já observou que uma das principais e mais comuns justificativas para internação é a agressividade.
O que ocorre, segundo a especialista, é que crianças e adolescentes que passaram por traumas, como a retirada do convívio familiar, podem ter formas diferentes de expressar seus sentimentos.
“Com a justificativa de agressividade, o sujeito fica mais vulnerável a internação. Não é a agressividade dele que gera a internação e sim a falta de serviços ou de articulação entre eles”
Flávia Blikstein, psicóloga
“Quanto mais tempo internados, menor a possibilidade de convívio social, o que é uma violação. Pensando no campo da infância é ainda mais grave, porque a infância precisa de relações sociais, é o momento crucial para o desenvolvimento e para o pertencimento social”, completa a psicóloga.
Para Flávia, a internação e exclusão da vida social sempre foi uma prática discriminatória, que prevê excluir os considerados diferentes. “Isso causa efeitos muito profundos na subjetividade. Se a gente sempre internar aqueles que se colocam no mundo de uma maneira diferente, a sociedade continua só convivendo entre com iguais”, diz.
Caminhos para garantir o direito à saúde mental das crianças
Profissionais da saúde, dos serviços de assistência social e da educação – além do conjunto da sociedade – devem acompanhar as crianças para identificar situações de risco à saúde mental, além de reforçar vínculos familiares e garantir rede de proteção.
Cobrar
É papel dos governos (municipais, estaduais e federais) garantir a implantação de serviços de saúde previstos em lei, além de saneamento básico, educação, renda e moradia. Em caso de violação de direitos, negativas ou demora de atendimento, é possível realizar uma denúncia na Defensoria Pública do seu município ou no Disque Denúncia 100, de forma anônima.
Monitorar
Estar atento se os serviços públicos como os CAPS, Unidades Básicas de Saúde e abrigos cumprem os serviços previstos em lei e com a qualidade devida. Caso não, também valem denúncias.
Denunciar
Percebeu alguma irregularidade? Teve negativas de atendimento? Está há muito tempo aguardando por uma consulta? É hora de procurar a Ouvidoria da Secretaria da Saúde ou Defensoria Pública do seu município para fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes.